2017-12-06



Risoleta C Pinto Pedro


DA POÉTICA DO TEATRO,



ou dos corações nas fruteiras

e maçãs em corações de ratos


Virgílio Martinho viveu entre 1928 e 1994. Em traços muito gerais, a sua produção literária andou muito pelo teatro e esteve próximo do surrealismo.

O anterior número (77/80) da revista A Ideia dedica um caderno à sua poesia. A apresentação desse número de 2016 teve lugar em Janeiro de 2017 no mesmo local onde será apresentado o número de 2017, mas neste Dezembro, no dia 16, pelas 15.00: o museu do Aljube, um espaço alquímico que, à semelhança de outros espaços muito marcados, se dedica, desde que a antiga prisão deu lugar ao museu, à transfiguração da história pela exposição da verdade.

No número de 2017 a apresentar em breve, também o teatro está incluído, através da obra de Jaime Salazar Sampaio (1925-2010), um dos mais importantes dramaturgos contemporâneos, originalmente recriando, na sua voz inconfundível, o surrealismo e o teatro do absurdo (absurda é a vida, diria ele, se pudesse responder-me agora). Amplamente representado, mais do que uma vez justamente premiado e hoje injustamente semi-velado. A Ideia vem duplamente chamar a atenção para a importância e para o valor deste autor, na revista e na apresentação da mesma, em que terá lugar a representação de duas das suas minimalistas e no entanto tão "grandes" peças, Paragem de Autocarro e O Escadote, pelo TIL, Teatro Independente de Loures, criado e animado por Carlos Paniágua, grande amigo e cúmplice do dramaturgo, e um dos seus encenadores de culto. Após a sua partida, continuado pelo filho, Luís Paniágua.

Jaime Salazar Sampaio é um dramaturgo também poeta. Sobre Virgílio Martinho poderíamos fazer a mesma afirmação. É um poema seu, "A Maçã", incluído num caderno que acompanhou a edição de 2016 de A Ideia, que escolho para vos apresentar o talento e sensibilidade. De Jaime Salazar Sampaio, o grande dramaturgo do século XX, deixo também um poema, pois foi como poeta que nasceu e esse poeta nunca naufragou no seu poético teatro. É um poema que considero dramático e que mostra, magistralmente, a rara delicadeza e a profundidade do seu pensamento sensível:

"autópsia

abriu-se o coração e só lá havia um rato.
abriu-se o rato e tinha um coração por dentro.
enorme."

Jaime Salazar Sampaio

Para finalizar, o poema de Virgílio Martinho sobre a maçã, essa outra forma que assumem os corações, por isso vejo a maçã deste poema como um belo e salvífico coração vegetal.

"A MAÇÃ

As altas chaminés da fábrica,
Na noite remota da infância
Eram troncos rubros, eram fogo.

Na fruteira lavrada havia a maçã.

Os pesados carros, as sirenes,
As correrias dos homens, os gritos,
Os uivos das mulheres, as explosões.

Na fruteira a maçã amadurecia.

Incandescências vogavam na noite,
Havia vento, era um chicote quente,
Os corações pulsavam, os corações.

Na fruteira a maçã suava.

Nas alturas o cogumelo de fogo,
Um outro sol como se fora fábula,
Crepitava, meu corpo tremia.

Na fruteira a maçã crestava.

Chama fremente da cor do que arde,
O cogumelo de fogo da noite fazia dia,
E a cada explosão as chamas repartia.

Na fruteira a maçã gretava.


Tornou-se desejo o cogumelo longínquo,
Cobiça de criança, deslumbramento,
Possuí-lo seria belo, diferente.

Na fruteira a maçã abria-se.

De manhã findo o fogo, apenas o fumo,
Ao esplendor sucedera a monotonia,
Fora-se o sonho, só o cinzento havia.

Na fruteira a maçã tinha a cor do lume."

Virgílio Martinho

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