2017-08-30



Risoleta C Pinto Pedro


Porquê ler os clássicos?

É um título de Italo Calvino. Li-o há uns bons anos, deve ter sido pela altura em que apareceu cá nas livrarias, porque é um autor que muito admiro e fiquei logo cativada pelo título. Quanto à pergunta, para mim dispensa resposta. Porque sim e pronto. Calvino discorre, magnificamente, sobre o tema, já não me recordo nem de metade do que afirma, mas eu poria a tónica, mais do que no "porquê", no conceito de clássico, de que ele também fala. Contudo, a parte que me interessa é que um livro/autor, por muitos anos e carradas de pó que sustente, poderá nunca ser um clássico, e outro, publicado na semana passada, poderá sê-lo... desde sempre.

Posto isto, volto-me para um autor inquestionável, que sempre me encanta, cuja arte admiro, cuja inteligência e sensibilidade cintila nas palavras que combina, e ao qual, de vez em quando preciso de voltar, como quem não quer esquecer a tabuada, a gramática ou a arte de ler.

Desta vez foi O Senhor Ventura, um livro que reescreve já perto dos oitenta, quarenta anos depois da primeira versão. Talvez porque, ao relê-lo com a maturidade dos oitenta, nele tenha visto um... clássico! Que é.

Que eu reli, embora nunca antes o tivesse lido.

Clássico no estilo da escrita, sem dúvida, na temática também. É a história contada de forma tão crua e tão humana e tão terna, de um... Fernão Mendes Pinto do século XX, natural do Penedono. Um homem cheio de erros na vida e no entanto como o compreendemos e lamentamos e... amamos. Neste amor abraçamos também este escritor de uma grandeza imensa que se quis ao nível da torga... Começa por inventar um Penedono no Alentejo, ou por deslocá-lo de Viseu para o sul, assim criando um aventureiro português que poderia ser oriundo de qualquer lugar duro, difícil e humilde, como a torga. Associa, neste livrinho, à história de viagem, o livro de aventuras, o romance psicológico, a parábola bíblica e a história de amor.

Criando personagens à primeira vista planas, mas que, na verdade, se mostram subtilmente na sua complexidade, como aqui tão bem e belamente se vê:

«Quinze dias depois o senhor Ventura era marinheiro a bordo de um navio, que fazia cabotagem no mar da China. Um serviço rude, aquele, mas que tinha as suas atracções. O senhor Ventura sentia-se bem entre os novos companheiros, calados, a meditar nunca se sabia que oração ou que crime.»

É um livro redentor. Aí, na sombra do outro lavamos as nossas secretas nódoas.

Um livro que aproxima as pessoas na sua humanidade transnacional sem as apagar naquilo que as distingue:

«uma saudade estranha de não sabia que mundo e que hora invadiu o coração bravio do Senhor Ventura, que só encontrou alívio na guitarra esquecida. Agarrou nela e começou a dedilhar com a mão direita as cordas que a esquerda premia como a torturar alguém. Um fado gemeu por fim daquela angústia.

-- Que é que ele tem? - perguntavam os companheiros, sem compreender.

-- Está a tocar – respondeu, calmo, um turco.»

A narrativa, fluente, equilibra as partes descritivas com os diálogos e os avanços rápidos da acção, não pesam digressões nem divagações, mas as que há são preciosas, entre o tom filosófico, poético e a sabedoria popular:

«Por cada pilriteiro dar os seus pilritos é que o mundo é variado, inesperado, e o cântico humano ressoa como um coro imenso numa catedral.»

De vez em quando, umas analepses em modo de elipse, sintetizam implacavelmente a história de uma vida:

«O alentejano vem direito a Penedono. Traz às costas algumas mortes, um lar falhado, a certeza de um filho, e os olhos cheios de estranhas e sobrepostas imagens.»

Esta vida será motivo para reflexão bíblica sobre o filho pródigo: «E aquele jovem insubmisso a guardar porcos em casa alheia passou a ser a meus olhos um símbolo invejável e promissor da fecunda solidão».

A brutalidade da realidade é sublimada e redimida, elevada, salva por este narrador, pensador, poeta:

«A mulher, no Alentejo, é de facto a metade do homem. A violência da vida é tal naquela secura, que só realmente dois, um de um sexo outro de outro, unidos no mesmo destino.»

Uma sabedoria que traz do povo, do qual se manteve próximo, e que mostra, na sua grandeza, do tamanho do mundo que põe o seu Fernão Mendes a quem chama Senhor Ventura, com o "Senhor" lhe acrescendo dignidade, a calcorrear:

«Como dá espinhos, o cardo dá também flores quando se lembra. Levianamente, quem o vê florido, pensa então que foi a Primavera que o forçou a tal brandura. Engano. Não há superação cá neste mundo. A lógica da vida é tão perfeita, que até mete aflição.»

E à terra e aos seus frutos continua a ir buscar a sabedoria. E o silencioso diálogo. E o consolo:

«O tempo é que cura as meadas! - enganava-se ele, a dizer isto à surdez de um sobreiral. E acrescentava, como se pusesse um penso na ferida: - Por enquanto é deixar correr.».

Depois de pôr o "seu homem" a correr mundo até Macau e à China, depois de o fazer apaixonar por uma russa e a ter um filho dela, depois de lhe irem morrendo mãe e pai tão longe, depois de regressar a refugiar-se em Penedono por ser apanhado a fabricar e comercializar droga, um negócio da China, e de anos depois voltar a correr mundo de regresso à China e de a cruzar de lés a lés, para se vingar das traições do amor, é no hospital onde, moribundo, o seu corpo vai cair, que debita, impotente, o ódio sobre a mulher que sabendo da busca vem ao seu encontro e aí ouve, passivamente, a acusação que os lábios ainda (mal) conseguem.

E é de uma beleza arrepiante este último encontro de despedida:

«Por fim, ambos encontraram a paz perpétua, ela a vê-lo partir para a eternidade, ele a esquecê-la para todo o sempre.»

O filho, que sem falar uma palavra de português alguém trouxera para Portugal, por abandono da mãe, ao fim de uns tempos sem pagamento o colégio onde o pai o pusera, foi conduzido até Penedono, de cuja casa o pai o fizera guardião deixando-lhe a chave. Mão amiga deu-lhe trabalho como pastor, a este filho da Ásia, assim recomeçando o percurso do pai numa pobre aldeia imaginária perdida na planície.Porquê ler os clássicos?

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