2017-05-24



Risoleta C Pinto Pedro


OS "ESSES" DE SALVADOR

Deixem-me especular. A etimologia da palavra especular é "speculari", que significa examinar ou observar atentamente. A raiz de "speculari" é "specio", que significa ver ou olhar. Com o tempo, a palavra foi alterando o sentido, tendo hoje um significado às vezes não muito positivo, que é imaginar diferentes possibilidades de um problema, nem sempre com sustentação. Mas eu gosto do sentido original da palavra: observar atentamente, ver, olhar.

Estamos demasiado automatizados em aceitar as interpretações que nos chegam pelos jornais, pelas redes sociais, pelos media em geral. E deixámos de ver. Alienámos o nosso olhar aceitando uma visão de fast-food uniformizada e superficial. É preciso resgatar o nosso olhar próprio, voltar a exercitar o pensamento, ligá-lo à visão e ao coração, criar o nosso modelo de interpretação da realidade e mesmo sabendo que ele é limitado e provisório, é sempre melhor do que um pensamento uniforme.

Esta introdução vem a propósito do sucesso de Portugal na Eurovisão.

O poema tem qualidade? Tem.

É extraordinário? Não.

A música é boa? Sim.

É extraordinária? Não.

É a primeira vez que concorremos à Eurovisão com uma canção de qualidade? Não.

É a primeira vez que temos um intérprete com qualidade a representar o país? Não.

Então? Que mudou?

Os momentos são diferentes, as circunstâncias a nível nacional, europeu e mundial não são as mesmas. Os países, como as pessoas, têm percursos que revelam a existência de ciclos, uns mais previsíveis, outros mais misteriosos.

Os ciclos que pessoas e países vivem no presente estão relacionados com os que viveram no passado e os que os esperam no futuro. Não temos muita volta a dar, embora para que eles se concretizem tenhamos de dar muitas voltas. Às vezes, como os cães antes de se deitarem, no mesmo sítio. Pelo menos aparentemente. Mas não temos muita margem de manobra: apenas podemos encurtar ou prolongar o caos. E a ordem. Mas no final, as contas dão sempre certas.

Estamos a viver um ciclo diferente em relação aos últimos tempos.

Para além disso, este intérprete, será ele bom? Não.

Muito bom? Também não.

Tendo apresentado uma muito boa, mas não extraordinária canção, é, ele sim, excepcional. Um trovador no mais elevado sentido do termo.

O que ganhou a Eurovisão, para além da nossa própria mudança individual, foi uma mudança de que também participámos como colectivo, um colectivo que pôde criar no seu seio ou se não criar, pelo menos acolher, um ser como Salvador Sobral, uma espécie de menino Jesus como o do poema de Alberto Caeiro, inocente, imprevisível, diferente e complexo.

Relativamente às iniciais do seu nome e apelido, não resisto a citar António Telmo, essa Águia de olhar agudo e atento às potências que existem na língua:

«Num livro meu recente, do qual saíram por enquanto só cinquenta exemplares, Congeminações de um Neopitagórico, lembro oportunamente a função mágica que Fernando Pessoa atribui à letra S e a asserção que faz de vir essa letra a ser a inicial dos homens intelectualmente e politicamente actuantes para bem ou para mal na vida da Pátria.

Com efeito, Sérgio, ainda no tempo de Pessoa, como Sidónio Pais, pelo poeta identificado com D. Sebastião e a que chamou Presidente-Rei, como Salazar, em quem de início acreditou e que depois desprezou foram, por diferentes modos, destacadas figuras de políticos. António Sérgio, explicando toda a nossa gloriosa história medieval com razões economicistas é a cabeça de uma longa série de personalidades cujos nomes começam por S. Será uma curiosidade de almanaque, mas nem por isso menos intrigante essa fileira de nomes: Spínola, Soares, Sá Carneiro, Cavaco Silva, Sampaio, Santana Lopes, Sócrates e outros que de momento não encontro. Estes, porém, são suficientes para mostrar como os cristãos-novos adoradores do Bezerro de Ouro estão, se Fernando Pessoa não erra, sob a influência da misteriosa Ordem da Serpente de que só nos diz um em dez.

Agostinho da Silva, também no último nome com S inicial, passou da Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra para o grupo da Seara Nova, destoando do republicanismo romântico dos seguidores de Sampaio Bruno e preferindo de longe Fernando Pessoa a Guerra Junqueiro e Teixeira de Pascoaes. A Seara Nova era uma promessa de pão, uma messe, uma missa, uma mensagem dirigida à acção imediata, esteada em razões susceptíveis de serem ensinadas onde houvesse mente de homem. Todavia, Agostinho da Silva foi ao mesmo tempo um grande admirador de Teixeira Rego e por ele, seu mestre de religião na Faculdade de Letras extinta por Salazar, através dele, autor de uma Nova Teoria do Sacrifício, sabia qual virá a ser o destino do Bezerro no dia do Grande Sacrifício com as águias de Deus voando acima do mundo.»

Poderá para alguns ser apenas uma curiosidade, para outros tema de reflexão mais ou menos crítica, a alguns desencadeará sorrisos confusos, outros especularão de acordo com as suas fantasias. Eu apenas registo, com espanto, mas sem conclusões, que no nome deste menino trovador, o S dobra. Diz Yung, a respeito dos símbolos, que quando se repetem são particularmente importantes.

Nas manifestações populares de alegria pelos sucessos internacionais de algum ou alguns de nós portugueses, é muito clara a esperança quase sebastianista de um resgate que vem de fora, por um salvador. Nisso não acredito. Mas acredito em símbolos. E este menino cantor com o seu duplo SS (não confundamos com outros SS de tristíssima memória) e as mãos ondulantes em frente do coração, talvez tenha, sem o saber, algo a dizer-nos.

Quanto à canção, não sendo extraordinária, contém algo que talvez tenha passado despercebido, apesar de aparecer logo no título. Não há melhor sítio para esconder uma coisa que ostentando-a num lugar onde todos possam vê-la, sabendo quem o faz (quem o terá feito?) que o olhar automático das multidões, por demasiado hipnotizado, olhará sem ver. Perguntar-me-ão: mas ver o quê?

Talvez especulando, mas assumindo a especulação, arriscaria: o significado profundo de "amar pelos dois". Não concordo com uma leitura (sem lhe retirar todo o mérito que tem) que ouvi recentemente na rádio atribuindo à expressão uma característica romântica. Por detrás da cifra que adivinho neste aparente romantismo, vejo uma seta a apontar o futuro: o tempo em que cada ser consiga sentir-se tão amado pelo Universo que não necessite de receber do outro o amor que lhe devolverá depois, mas que seja capaz, num diferente paradigma alheio à contabilidade do dar e receber, de amar pelos dois.

Para além disto tudo, traz um sinal em forma de dor disfarçada com um sorriso. A dor é no coração, o lugar da sagrada alquimia.

O saco de oiro que lhe protege o coração e que transporta junto do chacra da vontade ou de poder e que lhe guarda a alma, como sinal de fidelidade ao amor, é um sinal para nós.

Daí a importância de uma clara visão, que rima com coração. É preciso saber ler os sinais.

E depois... amar pelos dois. Sem romantismos serôdios. Sem lamechices de pacote. Algo sério e leve. Que eleve. A patamares que nem conseguimos (ainda) imaginar. Estamos a falar ou a recordar o futuro.

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