2017-02-08



Risoleta C Pinto Pedro


ADELAIDE CABETE, A NOVA ORDEM NO TEMPO E NO TEMPLO



No passado dia 25 de Janeiro celebraram-se os 150 anos do nascimento de Adelaide Cabete, uma notável mulher da 1ª República, e a data foi publicamente comemorada com uma conferência que incluiu a Isabel Lousada, investigadora que tem um competentíssimo livro sobre ela publicado, ao António Ventura, que tem estudado largamente a época e a figura, e a mim, que escrevi um livrinho "Adelaide Cabete e a Palavra Encontrada, História de uma Fundadora", publicado em edição quadrilingue pela Padrões Culturais em 2010 e que é um delírio bio-ficcional, poético-simbólico em torno da personalidade da minha conterrânea:

Adelaide Cabete é, juntamente com outros homens e mulheres do seu tempo, dos vários tempos, para além de uma iniciada, uma iniciadora. E uma precursora. No mundo maçónico e no mundo profano. Coloco-a ao lado dos homens porque, estando atrás, como eram as ordens do tempo, chegou-se à frente e liderou. Desse modo contribuiu para harmonizar o que estava desequilibrado. Assim se vai curando a doença do mundo, que é sempre resultado de uma desordem física e espiritual.

Não receio que o meu discurso se confunda com posições feministas, até porque não o sendo, reconheço que é ainda muito difícil não o ser. Entendendo aqui feminismo não como uma parcela ou secção da humanidade, mas como a dimensão indispensável à vivência da totalidade e do sagrado, mesmo no mundo profano. E os homens, como parte indispensável da humanidade, só têm a beneficiar deste acerto de frequências.

Não é por acaso que o planeta se encontra à beira da falência. Gaia, as mulheres, as crianças, todos os pobres e desvalidos, os idosos, os deficientes, e uma grande margem dos homens, todos fazem parte da Terra desprezada, violada, vilipendiada. E isto não é bom, como se tem visto. Se uma parte do corpo não é honrada nem reconhecida e ainda por cima sofre abuso, que saúde poderá ter o organismo?

Quero com isto dizer que não é feminismo no sentido estreito, chamar a atenção e enobrecer a acção destas mulheres, é mais como tomar um remédio sem efeitos colaterais, é como rezar uma oração de cura pelo planeta, é como honrar as nossas avós, que viveram em condições tão duras para que hoje uma parte de nós, uma parte apenas, se possa vangloriar de já não necessitar de ser feminista.

O feminino não são apenas as mulheres. O feminino é tudo o que é acolhedor e vulnerável no Universo. São as mulheres, as crianças, todos os seres frágeis e desprotegidos, os próprios homens na confusa busca acerca do seu novo papel no Universo. E a Natureza. O feminino é, afinal, a Terra, este planeta útero tão maltratado. Da compreensão da importância do feminino depende a nossa sobrevivência. Já não se trata de defender direitos de uma parte. Trata-se de sobrevivermos todos. Enquanto a Terra, essa primeira mulher, for violada, os bebés continuarão a nascer com dor e as mulheres sentirão as dores do planeta. Porque tudo é o mesmo. E não há política mais ou menos rasca que nos salve. No entanto, há sinais de esperança. O planeta começa a ser olhado como Mãe, o nascimento dos bebés a ser compreendido como o momento mais determinante para a vida de um ser, tendo Adelaide Cabete dado um importante contributo. e talvez um dia, quando todos os seres secundarizados como as mulheres, as crianças, os animais, uma parte significativa dos homens e a natureza em geral, viverem com a dignidade que lhes cabe, talvez então os humanos possam realmente sê-lo e encontrar o seu V Império, ou o Espírito Santo, ou a Graça, e ser felizes.

Adelaide Cabete, médica consciente da necessidade de protecção das mães pobres e desamparadas, na sua defesa do descanso das grávidas no último mês da gravidez (que arrojo, no tempo!), na sua actividade política como Republicana e sufragista, na sua causa dos direitos dos animais; e dos indígenas, em Angola, deu magno contributo, de acordo com a sua época, mais à frente do que a sua época. É, ainda, infelizmente para nós, de uma actualidade espantosa.

Apoiada pelo marido, um homem como ela excepcional, desobedeceu às ordens do tempo e criou uma nova ordem. No tempo e no templo.

Defendendo, no mundo apelidado de “profano” pelos iniciados, todos os que se encontravam em situação de fragilidade, mulheres, homens ou crianças, animais, seres livres e escravos.

E se hoje em Portugal existem lado a lado, com o mesmo direito de dignidade, lojas maçónicas masculinas, femininas e mistas, a ela o devemos. O direito à diferença, o direito de escolha apenas existem na possibilidade da diversidade. Caso contrário, é a ditadura não apenas política, mas também espiritual.

Foi contra essa ditadura e outras ditaduras que ela se levantou. Num tempo em que as mulheres ficavam sentadas, imóveis, conformadas e silenciosas. Esse medo ainda hoje permanece. Quanto mais não seja receando os excessos que sempre acontecem na luta que ainda existe neste nundo, perante a dureza dos extremismos.

Tal como Maria Archer, sobre quem fui convidada a falar em 2012, conheceu a diáspora.

A viagem de Maria Archer iniciou-se pouco depois dos 10 anos, creio, mas foi geograficamente muito ampla, começou em África e mais tarde ampliou-se ao Brasil. Mantendo a unidade da língua com que pensou, sentiu, viveu e escreveu. Quando voltou para Portugal terminou os seus dias num asilo, outro tipo de exílio.

Também Adelaidae Cabete andou por África, concretamente Luanda, mas em idade mais tardia, em 1929, seis anos antes de morrer, desiludida com a orientação política do país, a implantação do Estado Novo. Voltará doente, como Maria Archer, para se despedir do seu país antes da grande Viagem para os lados do Grande Oriente Eterno. A sua biografia já começa a ser conhecida, e porque há quem saiba muito mais do que eu, não serei exaustiva, nem sequer entrarei na polémica acerca do seu papel na Maçonaria feminina ou mista, quero apenas destacar os aspectos que me parecem mais expressivos.

Entre 1867 e1935 por aqui andou, conheceu na pele a pobreza e o analfabetismo, o trabalho de apanha de ameixa, o encontro com um extraordinário homem com quem casou e que a apoiou na expansão que viria a viver.

Aos 22 faz o exame da instrução primária e aos 27 conclui o liceu.

É a terceira mulher em Portugal a concluir a licenciatura em medicina. Número que não deixa de ser interessante, no contexto simbólico.

Mostrou que nem o berço nem o sexo limitam o ser, provou que o compasso, fechado e asfixiador, pode abrir a 180 graus e formar um círculo de 360 graus. E respirar. E deixar respirar.

Passou pelas organizações maçónicas existentes em Portugal, e até criou as que não havia. Saiu quando sentiu ausência de respeito pelo seu propósito e não hesitou em ir a França buscar apoio para criar o que cá não havia: a maçonaria mista.

Uma mulher livre, uma maçon livre.

Faz-me lembrar um outro maçon, o filósofo e pedagogo e escritor António Telmo, nascido oito anos antes de Cabete partir. Talvez ainda se tenham cruzado em Angola, onde Telmo esteve nos primeiros anos de vida. Quem sabe se não assistiu (e aqui já desculparão o delírio da ficcionista) a Telmo, ainda criança, em Angola, onde se encontrava com os pais, roubando a uma senhora um leãozinho que levou nos braços, na fuga. Se tiver sido o caso, Adelaide Cabete terá aplaudido o gesto. Era uma defensora dos direitos dos animais e não imaginaria melhor companhia para um leãozinho do que uma criança. Adelaide Cabete mostrou-o frontalmente pela sua corajosa prática.

Chamou ainda a atenção António Telmo, muitos anos depois de ter fugido com o leãozinho, «para a necessidade de formação de um «escol da Pátria e dar ao humanitarismo e ao universalismo […] um núcleo irradiante concreto.»

Adelaide Cabete faz parte deste escol, deste núcleo irradiante patriótico, humanitarista e universalista. Ela está no centro do centro. Honra à sua memória. Gratidão por quem foi e por quem hoje somos. Sem ela seríamos diferentes. Presumo, para pior.

Adelaide Cabete e António Telmo viveram livremente dentro e fora da Maçonaria. Viver plena e totalmente em liberdade é a única forma de se conseguir ser, realmente, livre. Não se pode ser livre num lado e oprimido no outro. A liberdade transcende as circunstâncias e não pode sofrer ajustes. Ou se é livre, ou não se é. As circunstâncias, sim. Essa, a grande lição de Adelaide Cabete.

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