2016-03-23



Risoleta C Pinto Pedro


RELIGIÃO, JUSTIÇA E LIBERDADE






A elaboração desta reflexão foi inspirada pelo pensamento de um autor francês chamado André Benzimra, cuja obra recomendo. Foi apresentada numa conferência sobre o tema.

Centrar-me-ei nos números. Principalmente o dois e o três, mas também o um, e dos dois conceitos propostos, privilegiarei o da liberdade.

Do Genesis, no Evangelho segundo Mateus e da História dos Profetas e dos Reis no Deuterónimo, Benzimra salienta três passagens importantes, em cada uma das quais existe um episódio diferente onde aparecem três mensageiros:

No primeiro caso, anunciando o improvável nascimento de Isaac; no segundo, em adoração de um incógnito menino; e no terceiro caso, a purificação de Muhammad.

Uma referência judaica, uma referência cristã, uma referência islâmica.

Sempre três homens: três em pé à entrada da tenda onde estava Abraham, três vindos de Oriente seguindo uma estrela e depois prosternados em adoração, e os últimos três descidos do céu, vestidos de branco, efectuando algo que poderíamos descrever como uma intervenção cirúrgica de futuro, retiraram as entranhas de Maomé e lavaram-nas.

Têm todos uma aura de sobrenatural ou, no mínimo, de mistério. Para além de que a sua acção é sempre plena de Graça. Sob diferentes formas, uma bênção.

Pergunta Benzinra:

Porquê três, quando um seria suficiente para fazer o que vinha fazer? O que significa ser um ou serem três os portadores da bênção de Deus?

Porquê a uniformidade, a união, a inseparabilidade dos três?

Agora entro eu a ampliar a interrogação: estamos sempre perante episódios relacionados com o nascer: o anúncio ainda antes da concepção, a adoracão perante o nascimento e o renascimento já em adulto.

Benzimra adianta a hipótese de que cada um dos três anjos e magos represente a essência de cada uma das religiões do livro.

Vê também na estreita união dos três, uma união quase identitária, a identidade que existe entre o judaísmo, o cristianismo e o islão.

Argumenta ainda que, apesar de a paternidade do Judaísmo poder ser atribuída a Abraão, como a Jacob e a Moisés, estabelece que Isaac, o mais discreto dos patriarcas, apesar de não ter sido o iniciador, pela exemplaridade da sua absoluta crença no Senhor está para o Judaísmo como os outros dois para as duas outras religiões: o modelo, aquele que melhor representa. Daí a escolha, o ter sido anunciado pelos três seres.

E vai à procura do simbolismo mais fundo, recordando que as antigas rivalidades entre catolicismo, ortodoxia e protestantismo estando praticamente sanadas, ou pelo menos já não assumindo carácter dramático, e nunca tendo havido conflitos dos Ocidentais com as outras tradições como o taoismo, o hinduísmo e o budismo, é entre as três religiões do livro que é preciso hoje encontrar o Universalismo que permitia a Joseph de Maistre declarar que não pode existir nenhuma religião, ainda que falsa (e notemos que estamos no século XVIII) que não tenha algo de verdadeiro.

É a partir daqui, do princípio da dualidade, do verdadeiro e do falso, ou do falso que contém o verdadeiro, que entramos na parte que mais nos interessa.

É aqui que ele nos leva, literalmente, ao tapete. Ou chão. Que na calçada portuguesa se revela em quadrados pretos e brancos. Chão, o que existe de mais baixo e que é o nosso mais alto mestre. E continuamos no terreno da dualidade: o pavimento de mosaico, o xadrez, que representa a evidência da separação e a possibilidade da união.

Como diz Benzimra, cito e traduzo: "não existe nada na natureza que não tenha o seu oposto, o seu contrário, o seu rival."

Como cada veneno o seu antídoto, como cada nova doença, como afirma, o correspondente remédio, que os pesquisadores logo tratam de procurar, levando o tempo que for preciso, sem duvidarem da certeza de o encontrar; sabem que existe, é apenas uma questão de tempo.

Chama também a atenção para o início do Livro Sagrado, com a palavra bereschit, que significa "no princípio", chamando a atenção para a tese dos estudiosos que relacionam a letra com que se inicia, beth (b em português) com o seu valor numérico 2.

Isto pode ser visto de forma consistente, como um indicador de que o resultado da manifestação pela criação, este mundo denso que conhecemos é, como também não ignoramos, o mundo da dualidade.

Ora o um é o mundo onde não pode haver desequilíbrio, dado que o equilíbrio nasce do dois. Tem de haver uma pendulação entre um lado e o outro para que o equilíbrio seja possível, caso contrário é imobilidade e fixidez.

Perante o dois, a polaridade, a oposição, a humanidade tem quatro escolhas ou caminhos.

E aqui já estamos, claramente, perante o tema da liberdade. Liberdade é escolha. E é tanto mais livre quanto mais conscientes somos de que estamos perante uma escolha e não uma fatalidade, uma vitimização, um ataque, uma inevitabilidade.

Para fugir àquilo que no mundo parece a loucura, o caos, a constante luta dos pares antagónicos, a humanidade tem tentado várias formas:

A fuga para o um, o caminho de retrocesso, os vários tipos de escapismo, a busca do útero, o sossego, a mãe, ou o ainda anterior útero de Deus, ou outro qualquer mítico útero, situado no irrecuperável passado, logo, uma ilusão. Pelas drogas, pelo suicídio, pelos divertimentos, pelos vários ismos, por qualquer tipo de alienação, ainda que pareça muito nobre. Tudo o que é fuga, das adições às meditações, pode ser uma alienação.

Pode ainda optar por um dos pares de opostos, contudo é muito difícil permanecer numa das partes porque este mundo não está fixo sobe nenhum ponto de apoio, mas sempre em movimento, logo, em contínua oscilação, o que significa que escolher uma das partes é colocar-se no ponto de arremesso para a outra. É então que uma outra solução, mais estável, se apresenta: o casamento alquímico dos dois contendores, a união, a síntese.

Podemos então perguntar-nos, uma vez aqui chegados:

E como é que isso se faz?

Entre a pedra preta e a pedra branca existe uma linha ténue que as separa e que as... une. Uma espécie de pele.

É aqui que entra a lei psicológica de associação que, na definição de Benzimra, faz que todo "o contrário chame ao espírito o seu contrário". E acrescenta: "como se os opostos se atraíssem estando destinados a unir-se". Ou, como acrescenta, a reunirem-se.

Não refere, mas é aqui que entra a ideia de diabo (ele chama-lhe mal), que significa, etimologicamente, o que separa. Acaba por ser esse o seu grande pecado. Que tudo invade nesta dimensão. Ora se algo está separado, é transparente que é porque em algum tempo já esteve unido.

Volto a citar Benzinra:

"a fractura que atravessa o mundo e a divisão em dois campos opostos é como o traço de uma Unidade antiga que teria sido perdida, mas que deverá, em algum momento, por não se sabe que misteriosa síntese (consoliatio opposiorum), reconstiuir-se."

O "traço de uma Unidade antiga" é o ténue traço que separa pedras cúbicas pretas e brancas no mosaico da calçada. A vida no universo denso e separado é um jogo que pode ser jogado ao pé-coxinho na alternância dos quadrados, ou seguindo a linha ténue que separa e une, como quem segue por um fio sobre o abismo, pé ante pé, na busca do equilíbrio, a única segurança.

Acredito que a liberdade no Mundo passa pela aprendizagem que cada humano fizer deste bom andar, deste saber escolher a via do ténue traço que une o que antes parecia estar em luta. Parece incómodo, mas é seguro. É, aliás, a única opção verdadeiramente segura. Se antes tivermos treinado o olhar claro e agudo que vê em profundidade para além daquilo que no mundo ou dentro de nós parece caos e que a genial calçada portuguesa ordena numa estilização perfeita.

As palavras de Benzimra mostram de que forma podemos contribuir para a elevada síntese a partir da sabedoria do chão.

"Portanto é preciso acreditar, ou ao menos esperar, que se uma certa força divisória fez com que o Universo se tenha fracturado em algum momento, uma outra força empenha-se secretamente - e por enquanto de modo imperceptível - a repará-lo, isto é, a restituir-lhe a unidade perdida. Neste combate cósmico participam no seu nível, os que cooperam para a união das religiões."

Conhecendo nós as feridas e fracturas expostas actualmente visíveis no mundo, a mestria do número três, a aprendizagem com os símbolos, a experiência de coabitação em egrégora das diversas religiões e ateus e agnósticos, é a perfeita ferramenta prática e ao mesmo tempo transcendente, desde que nenhum de nós se enfune como uma vela ao vento, não inche como um balão, mas se curve sobre os quadrados do chão de forma a reflectir o seu consciente passo e unir Jerusalém, Roma e Meca no triângulo do coração, ainda que nenhuma dessas seja a sua religião. Nesse momento, o triângulo invertido que ainda é o nosso coração, fará uma rotação de 180 º sobre si mesmo, de modo a permitir o triângulo equilátero, o correcto olhar que tudo abraça.

Algo não muito distante do conceito de "cristianismo transcendente" de Joseph de Maistre, ou judaísmo transcendente ou islão transcendente ou como diz Benzimra, outra coisa qualquer, a que eu acrescento atrevidamente o de agnosticismo ou ateísmo transcendente, algo que seja a alternativa ao conceito de seita que ainda hoje se aplica às religiões, considerando que como seitas são secções, correspondem apenas a partes, parcelas de algo muito maior e que está de acordo com o que António Telmo designa como "síntese superior". A necessidade de reunificar.

Trata-se, como diz René Guénon, citado por Benzimra, de " educar [...] para a universalidade, realizando o catolicismo no verdadeiro sentido da palavra, no sentido em que entendia igualmente Wronski, para quem este catolicismo não tinha uma existência plenamente efectiva enquanto não conseguisse integrar as tradições contidas nos Livros sagrados de todos os povos."

Benzimra define muito bem a questão: "não se trata de converter os homens, mas as próprias religiões, e a sua conversão não passa [...] pela força, mas pelo acesso ao Conhecimento. O verdadeiro Universalismo não é a ligação de todos a um dogma, mas o transcender todos os dogmas em direcção a uma Verdade una e sem fronteira."

Esta verdade una não é a do ventre protegido e de olhos ainda fechados, é aquela a que se tem acesso depois de passar pelo mundo das seitas de olhos bem abertos percebendo que existe o espírito verdadeiramente santo a que se tem acesso por uma operação de integração dos opostos, não pela recusa em ver a hostilidade, mas pela compreensão de que o caminho do dois continua para o transcendente três, a intuição do coração, na busca pelas concordâncias entre grandes tradições. O mundo é o seio perfeito onde esta operação alquímica pode ser treinada antes de podermos transferi-la em segurança para os nossos corações.

A substituição dos dogmas fechados sobre si mesmos, pelos princípios, que constituem uma abertura sobre o Universo como colos de uma grande Mãe.

Um colo de princípios, aberto sobre o Universo das religiões e mesmo da sua ausência. De onde esteja ausente o princípio da seita, da fractura, a ferida aberta no Universalismo. Corão, a Torah e a Bíblia são excertos do grande livro universal onde cabem todos, passagens, citações de algo muito maior.

Termino citando, mais uma vez, Benzimra:

"no lugar de verdade onde se encontra esta matriz celeste, as diferenças que opõem aqui em baixo as três revelações dissolvem-se completamente para permitirem que apareça um só texto cujas três partes se encontram em coerência perfeita. [...] a tradução do hebreu, do grego e do árabe na língua divina tem como efeito fazer aparecer as três Escrituras, não como três sequências de uma mesma Revelação, mas como um texto verdadeiramente único. Certamente e ao contrário daquilo que se diz às vezes no islão, não foram apenas os administradores judeus da Bíblia que adulteraram o texto santo: em todas as traduções humanas, a Escritura divina está manchada de falsificações."

Como bem avisa, não se trata de "sincretismo fantasista", como chama ao que têm tentado fazer algumas seitas modernas, não se trata de inventar, mas de redescobrir.

Não necessitamos inventar nada, apenas olhar profundamente o humilde chão e redescobrir a linguagem do símbolo para seguir por ele o caminho da liberdade.

Compreender este conceito ao mesmo tempo simples e profundo de que a liberdade é a aprendizagem do simbolismo do três, que o traço que separa e une o preto e o branco é a nossa própria pele que nos separa dos outros seres, mas que também nos une, orientando-nos os passos pelo caminho do meio, o fio, o traço, a busca constante do equilíbrio, a escolha pela integração, a liberdade.

Concluo com uma citação de Mikel Dufrenne: "A liberdade não repudia todas as regras, mas escolhe ... regras mais secretas". Daí que seja tão importante recorrer ao símbolo e à linguagem poética, as cartilhas da profundidade. Isso fará certamente alguma diferença no nosso pensamento e nas nossas acções.

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