2015-09-02



Risoleta C Pinto Pedro


“Eppur si muove”

Há não muitos anos ainda aconteciam casos de pessoas com deficiência serem aprisionadas, escondidas em barracões pelas próprias famílias, há não muitos anos ainda não era fácil integrar uma criança numa escola de ensino normal devido a vários obstáculos que começavam nas dificuldades arquitectónicas e acabavam no preconceito ou vice-versa.

Há não muitos anos ainda, ouvi alguém no cinema protestar por causa da criança que me acompanhava, perante o humor inteligente do filme, se expressar em sonoras gargalhadas cuja emissão e intensidade não conseguia controlar, dado ter uma paralisia cerebral. Protestava essa pessoa dizendo que se não sabiam comportar-se era melhor ficarem em casa. Ou no barracão ao fundo do quintal, apeteceu-me, na altura, responder. Esta criança tinha oito anos e lia, por exemplo, Fernando Pessoa. Não sei se a pessoa incomodada com o riso inteligente de uma criança alguma vez lera, por si, o poeta.

Mas paralelamente muita coisa já estava a acontecer, já havia espectáculos de dança incluindo bailarinos profissionais e pessoas com paralisia cerebral em cadeiras de rodas, outros jovens faziam os seus cursos universitários apesar da total impossibilidade de locomoção, uso das mãos e severas dificuldades de expressão oral.

Já se começavam a construir rampas, mas na maior parte dos acessos ainda era necessário aos pais transportarem os filhos, quase do seu tamanho, ao colo pelas escadas que conduziam aos teatros, aos museus, aos cinemas, aí uma vez chegados pedir a alguém que amparasse a criança ou o adolescente numa cadeira, para não cair, voltar a descer a escadaria, transportar a cadeira novamente para cima, e passadas umas horas proceder a esta operação no sentido inverso. Mas isto era o menos. O pior eram os olhares, como se os alvos fossem cegos, os comentários, como se os alvos fossem surdos, as atitudes, como se os alvos fossem estátuas.

Entretanto, foram passando esses poucos muitos anos. Uns partiram, outros chegaram. Foram-se construindo acessos, foi-se sensibilizando a opinião pública, foram-se abrindo as escolas aos meninos jovens meteoritos vindos de outros planetas e desarrumando crenças, convicções, consciências, preconceitos. Os que passaram a privar com estes valentes meninos diferentes aparentemente vindos de outros planetas ficaram melhores e não voltaram a ser iguais. Mas ainda há muito trabalho a fazer.

A escola onde leccionei durante catorze anos (dois ciclos naturais perfeitos), a Secundária Artística António Arroio, é um dos laboratórios de amor onde se acolhem pequenos meteoritos. Durante anos foram os jovens portadores de deficiência auditiva e outros tipos de deficiências em menor escala.

Soube agora que a escola continua a apostar na inclusão de alunos com necessidades especiais, entendendo que a escolaridade obrigatória de 12 anos trouxe responsabilidades acrescidas de que não se aliena. Assim, ganhou a escola, com todo o merecimento, o 1º prémio do Concurso Escola Alerta, do Instituto Nacional de Reabilitação, com um trabalho sobre Mariana, uma adolescente com paralisia cerebral, num projecto intitulado "Apocalipse Artístico" que pode ser visto seguindo a seguinte ligação:
http://www.antonioarroio.pt/apocalipse-artistico-a-saida-da-escuridao/
No final do vídeo poderão assistir ao belíssimo e comovente testemunho da aluna.

Há umas décadas era impensável para alguns que uma criança que não andava e não falava pudesse aprender a ler praticamente sozinha aos 5 anos, e aos oito estivesse a ler Pessoa, Espanca e Régio.

Hoje ainda há quem duvide que uma criança com paralisia cerebral possa frequentar uma escola artística. António Telmo, o apelidado com justiça filósofo do futuro, desaparecido do seu corpo há cinco anos, mas cada vez mais presente através dos seus livros pensamento, dizia que o problema com a invasão da nossa oralidade pelas vogais átonas, tornadas praticamente surdas, foi da responsabilidade da Inquisição e da Ditadura, que nos obrigaram a uma tradição de sobrevivência de falar em surdina.

Ainda não desapareceu totalmente algum lastro mental da Inquisição, ainda não desapareceu totalmente algum lastro social do fascismo, as pessoas com deficiência ainda são alvo de alguma discriminação, mesmo que em segredo, o segredo inquisitorial e ditatorial, no entanto cada vez são mais frequentes os nichos de resistência e liberdade. Aconselho o visionamento deste vídeo, por uma questão de saúde mental de quem vê. Uma jovem com paralisia cerebral numa escola de ensino artístico foi a melhor coisa que poderia ter acontecido à turma que com a sua presença foi brindada. É sempre esta a reacção dos que têm ou tiveram o privilégio de aprender a viver com uma pessoa com deficiência. O preconceito ainda existe, “eppur si muove”. Não é possível impedir o avanço da história. Apenas se pode atrasá-lo, mas começa a ser, felizmente, cada vez mais difícil. As crianças portadoras de deficiência começam a sair dos barracões onde durante séculos foram encerradas, a humanidade relegada para zonas obscuras começa a romper as costuras e a aparecer ao sol. Para desconforto das nossas consciências de civilizados e ocidentais. Felizmente. A humanidade ainda não está bem, mas está melhor do que quando conseguia esconder o que lhe era incómodo debaixo do tapete. Agora, pelo menos, já tem de se confrontar com o que não quis ver. Falta muito, mas já é um começo


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