2024-12-04
O PRESÉPIO SEGUNDO MIGUEL REAL


Risoleta C Pinto Pedro




(Esta crónica talvez de Natal, o leitor saberá, integra e inicia um texto muito mais extenso com diferente título que se publicará oportunamente num outro sítio. Foi inspirada pela leitura do recente livro de Miguel Real, Autobiografia de Jesus, publicada pela Dom Quixote em Setembro deste ano de 2024.)

Quando o menino que é hoje o grande ensaísta e ficcionista Miguel Real, perguntou ao seu catequista como era possível aquela história da ressurreição, a pergunta não caiu bem ao homem da Igreja e o menino com sua dúvida foi visto como um rebelde e um provocador. Houve, de quem o fez, um gravíssimo equívoco, um erro de entendimento, ou uma rigidez de pensamento. Na verdade, aquela criança estava a elevar Jesus acima dos deuses, sem pôr em causa a sua humanidade. Sabemos como os deuses são corruptos, ciumentos, injustos e tomados pela ira. Pôr em causa a divindade desta figura amorosa e justa, foi a maior homenagem que o menino pôde fazer à pessoa de Jesus. Ao ler este seu presente livro, confirma-se que Miguel Real se manteve todos estes anos fiel à paixão por este personagem de perfil superior e transcendendo as limitações que nos fazem tão gloriosa quanto miseravelmente humanos. Mostra como conseguiu ele enobrecer a humanidade no cadinho em que se transformou. E como pôde permanecer adorável e amorável ao longo das longas décadas destes séculos, apesar do que tentaram fazer dele, roubando-lhe a naturalidade, a religião e a humanidade. Aquilo a que se chama a conversão à força mesmo depois de morto. A conversão forçada em vida viria a ser bem conhecida dos judeus seus irmãos que se lhe seguiram uns séculos depois, aqui em Sefarad. Com muito sofrimento, mas insuficiente foi o sucesso dos que a tal os obrigaram, pois nunca conseguiram verdadeiramente matar o judaísmo, que neles permaneceu oculto, mas profundo, tão profundo quanto profundamente oculto. A prova é este livro de Miguel Real, que mostra como a tese, a revolta, a denúncia e a paixão podem coexistir numa obra, criando um objeto de arte e amor apesar de, ou talvez com a violência do prefácio. Prefaciou Miguel este livro com a mesma amorosa ira com que Jesus entrou no Templo expulsando os vendilhões.

Sentiu algo semelhante, sem saber, a criança que eu fui e que hoje ainda sou, ao apaixonar-se pelo mesmo, mas ainda nas palhas. Distinguia-me de Miguel Real um factor aparentemente decisivo, mas pelos vistos não conclusivo. Ele era um produto da educação católica, eu não tinha recebido qualquer tipo de educação religiosa. Mas nenhum de nós resistiu. No meu caso, àquela criança; no caso dele, àquele homem. Em ambos, houve uma rendição ao ser que veio mostrar, não o melhor da divindade, mas o melhor da humanidade. Veio como espelho cintilante.

Quando, na sala obscurecida das noites de 24 de Dezembro, aproveitando a azáfama dos meus pais na cozinha em volta das azevias, eu menininha me sentava no chão adorando o menino que era o irmão possível para uma filha única, o facto de ele permanecer ano sobre ano nas palhas sem crescer e sem partir, sempre fiel à nossa Aliança fraterna, conferiu-lhe uma eternidade humana que se manteve até hoje, apesar que ter vindo a perder, com os anos, algumas peças fundamentais do presépio.

Tive um choque quando li a primeira página do romance de MR, a página vinte e um. Como se falasse de mim:

“trago um mistério comigo, o meu rosto nunca sorri,”; “a gravidade e a sisudez são o meu porte, antes de agir penso duas, três vezes,”;

“estou sempre só, embora as multidões se acotovelem à minha volta”;

“regras duras, disciplina severa, solidão, pensar o futuro, louvar o próximo, é assim que atravesso o tempo”; “são os meus traços essenciais, sentir-me só e estar triste. O meu sorriso é sempre forçado, menos do que um sorriso, é um esgar de concordância”;

Não sei se ISTO é apanágio de uma criança com problemas de identidade, que não sabe bem aonde pertence. No caso de Jesus, pela dúvida acerca da radical paternidade, no meu caso, pelo constante deambular de terra em terra desde tenra idade.

Ou talvez estes sejam os traços escondidos de um judeu, de uma criança que sabe sê-lo sem conseguir encaixar-se na totalidade, ou no meu caso, de uma criança vinda sem dúvida de judeus sefarditas, pois o apelido materno não engana, mas não recebeu qualquer tipo de educação religiosa onde possa integrar-se, sendo esta característica mais uma a acrescentar ao afastamento e à distância das outras crianças que estava constantemente a deixar para trás, para reencontrar outras novas nos novos lugares aonde a família estava permanentemente a dirigir-se.

E, no entanto, há o Amor à Vida seja qual for a forma que ela assuma, e assim começa, na pequena vida do Jesus ainda menino, aquilo a que os judeus chamam tikun, o dever de reparação, começando por si próprio. Quando o aperfeiçoamento individual toca o mundo, compre-se o tikun olam. Mas nunca se sabe. Fazer o bem é como uma tômbola. Este é um dos pontos acentuados por Miguel Real. Paradoxalmente, é neste trabalho de melhoramento por actos de bondade que Jesus se apercebe de como, por vezes, o bem conduz ao mal. Um dia, conta-se nesta narrativa, tendo Jesus salvado um estorninho ferido pela maldade inconsciente das outras crianças, acabou por curá-lo e libertá-lo. Para vir a ser presa de uma águia. Como voltou a suceder mais tarde, quando, para curar o endemoninhado, canalizou os demónios para os inocentes porcos, que acabaram por morrer afogados. O Jesus de Miguel, porque este é um Jesus segundo Miguel transformado no actual apóstolo de que Jesus necessitava agora, mais do que um novo Messias, esse Jesus deste Miguel, prova-nos que antes do tsimtsum, a palavra grega que expressa a contração de Deus para que o universo pudesse existir, antes desse acto de emanação, seguido da criação, formação e acção, já estava em forma potencial, na não existência, tudo o que passou a existir, como o tempo, o que permitiu que hoje mais um apóstolo pudesse dar voz nova a Jesus e através dele responder às criançs com dúvidas nas aulas de catequese onde os meninos já adivinhavam o Menino com o superior conhecimento de toda a perversão que viria a acontecer por conta da desjudaização de que viria a ser alvo. Foi afinal o primeiro cristão-novo, e vítima de um fenómeno de desidentidade (e nós com ele) de um dos melhores judeus que houve sobre a face da Terra. Assim pôde Miguel juntar a ira que mostra na introdução, com o amor que desdobra em todo o romance, o Evangelho de Miguel em forma de autobiografia de Jesus. Uma parceria perfeita, porque já contemplando o que o futuro sabe e os textos evangélicos do passado ainda ignoravam ou ocultavam. Neste Natal, o meu presépio apesar de despojado das várias figuras importantes que se foram perdendo ao longo dos anos culminando em duas recentes, se está mais triste pelas perdas, será mais rico pela lucidez. Maria permanecerá em Nazaré, José foi combater na guerra que cria justa, e o menino a quem atribuíram dois pais nasceu sem a presença de nenhum e em casa. Neste parto, segundo Miguel Real, houve sangue e gritos e animais assustados. Só depois “Maria ajeitou o pão, o queijo e o vinho sobre a esteira térrea e distribuiu o leite em cuias de madeira para os cordeirinhos, os pastores sentaram-se no chão admirando o menino na manjedoura, rodeando-o, aquecendo com o seu bafo húmido. A porta, como que hesitantes, tinham parado a vaca e o boi, pareciam sorrir através de um esgar livre, bafejando menino, as ovelhas e as cabras baliam lindas e contentes, dobrando os joelhos da frente e encostando-se aos pastores, as de Maria não a deixavam, rodeando-lhe as pernas, achando estranho o cheiro exalado entre elas, o burro ficou metade dentro, metade fora, as lagartixas entraram à socapa, sem ninguém dar por elas, o lagarto não, fora um dia pisado por uma vaca e onde estivesse ela ele não estava, subiu pela parede exterior rebocada a tinta de cal e pôs-se à janela, os sapos não saíram do poço enlameado, fugiam de tudo o que era seco, pois precisavam de água para sobreviver; o bode que acompanhava as cabras como seu dono recusou-se a entrar quando viu o pastor ali sentado, de cordeirinho entre as pernas e mão direita presa no cajado.”

Este presépio, ou esta parte de presépio, ou este momento, que me faz lembrar o presépio vivo que via em Alenquer em criança quando ali vivi, se contém alguns dos elementos que tradicionalmente lá pomos todos os anos, destaca-se pela presença de animais que faziam parte da fauna de Nazaré na época do ano do sucedido, o lagarto e as lagartixas, mas não na época do ano do nosso Natal, de quando nos nasce o nosso menino Jesus. Por outro lado, há uma alusão carnal ao cheiro de Maria recém parturiente, e já tivéramos antes a descrição bem realista e diria mesmo naturalista dos seus gritos antes do nascer do filho, uma descrição crua e chocante perante o cenário das músicas dos centros comerciais, das lojas repletas de gente a comprar perfumes para serem transportados no trenó do santo da Coca-Cola: “[a]dona-menina que não cessava de gritar como se estivesse no matadouro?, as ovelhas, atemorizadas, deixavam escorrer dejectos nauseabundos pelas pernas, sujando-as, afastando, por malcheirosas, os cordeirinhos famintos; as cabras guinchavam, apavoradas, dando pinotes como saltimbancos de estrada, o bode desferia-lhes marradas, ferindo-as com a ponta dos chifres, a mãe-cabra, que não tivera partos fáceis, balia apavorada, o seu instinto materno identificara nos tremidos da voz da menina-dona o pesadelo que fora um cabrito entalado no canal escuro da nascença, e rogou ao Deus chifrudo das cabras que desse uma boa hora à menina”

Também é de ressaltar aqui a perspetiva dos animais, que mesmo na adoração do menino, não deixam de proteger a sua própria pele, como é o caso do bode.

Há a assinalar, igualmente, a ausência do pai José partido nove meses antes para combater Herodes e os romanos. Este intervalo temporal é, na ficção, fonte de injustos equívocos e desconfianças face à honestidade de Maria no casamento. A verdade é que fora visitada pelo marido nessa mesma noite, antes da partida. Nem pecado, nem artificial inseminação divina, mas algo muito humano: o desejo na noite do casamento: “Maria, de olhos baixos, envergonhada, disse, José conheceu-me na noite do contrato, quando vim visitar a casa, estava desejoso.”

Voltando ao presépio, é um presépio caseiro no sentido mais literal da palavra e não um presépio improvisado durante uma viagem de fuga. Quanto à presença em massa dos animais, não poderia haver imagem mais franciscana, afinal foi o mesmo Francisco que inaugurou a representação deste drama. Algo distingue, contudo, este presépio daqueles que conhecemos. Ou talvez não tanto. Sobretudo nos presépios mais complexos, em escadinhas ou em cascata onde nada falta da vida do dia-a-dia, o menino passa quase despercebido no meio da azáfama a que se entregam as tantas outras figuras. Também neste presépio o menino quase não é mencionado, fica escondido atrás da sombra da dor da mãe para o ter, e da enorme comunidade dos animais. Só começa a ter vida própria depois dos 3 anos, antes disso apenas o que aqui se conta. Não é canónico, mas talvez não seja falso:

“Contam-me, ainda hoje, que chorei por um mês inteiro, com as minhas mãozinhas empurrava os seios da mãe, o que a entristecia. A avó Ana, em visita à filha, gritou-me que eu era um ingrato, que fazia chorar a mãe, que eu merecia voltar para as profundezas de onde viera, essa cova escura do corpo, esse não-ser abissal, mais um dia a chorar ininterruptamente e ela, já que o pai se ausentara, convenceria a minha mãe a entregar-me ao rabi para adoção, mesmo para ser vendido como escravo, sempre fazem algum dinheiro com a porcaria de um bebé como tu. Quando a mãe Maria me voltou a pegar, suguei avidamente o seu leite.” Uma avó muito diferente da minha, também Ana, mas com A de Amor.

Quanto ao presépio, muito atípico, é um caso típico de ausência de vinculação ao nascer, não admira que mais tarde, sob o pretexto de proteger a família, Jesus quase a tenha renegado.

Hoje tornou-se o símbolo da festa da família, o que não acho mal, e penso que ele não desaprovaria. Afinal, Jesus bem sabia como o bem pode conduzir ao mal e vice-versa. Bem ínvios são os caminhos do Senhor. Para a Unicepe e todos os seus leitores, votos de um Natal inspirado e feliz. Com bons livros no sapatinho, na chaminé ou onde quiserem colocá-los, como é o caso deste livro de que aqui falo. Porque a nossa necessidade de consolo só assim se pode satisfazer.

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