(Esta crónica talvez de Natal, o leitor saberá, integra e
inicia um texto muito mais extenso com diferente título que
se publicará oportunamente num outro sítio. Foi inspirada
pela leitura do recente livro de Miguel Real, Autobiografia
de Jesus, publicada pela Dom Quixote em Setembro deste ano
de 2024.)
Quando o menino que é hoje o grande ensaísta e ficcionista
Miguel Real, perguntou ao seu catequista como era possível
aquela história da ressurreição, a pergunta não caiu bem ao
homem da Igreja e o menino com sua dúvida foi visto como um
rebelde e um provocador. Houve, de quem o fez, um
gravíssimo equívoco, um erro de entendimento, ou uma
rigidez de pensamento. Na verdade, aquela criança estava a
elevar Jesus acima dos deuses, sem pôr em causa a sua
humanidade. Sabemos como os deuses são corruptos,
ciumentos, injustos e tomados pela ira. Pôr em causa a
divindade desta figura amorosa e justa, foi a maior
homenagem que o menino pôde fazer à pessoa de Jesus. Ao ler
este seu presente livro, confirma-se que Miguel Real se
manteve todos estes anos fiel à paixão por este personagem
de perfil superior e transcendendo as limitações que nos
fazem tão gloriosa quanto miseravelmente humanos. Mostra
como conseguiu ele enobrecer a humanidade no cadinho em que
se transformou. E como pôde permanecer adorável e amorável
ao longo das longas décadas destes séculos, apesar do que
tentaram fazer dele, roubando-lhe a naturalidade, a
religião e a humanidade. Aquilo a que se chama a conversão
à força mesmo depois de morto. A conversão forçada em vida
viria a ser bem conhecida dos judeus seus irmãos que se lhe
seguiram uns séculos depois, aqui em Sefarad. Com muito
sofrimento, mas insuficiente foi o sucesso dos que a tal os
obrigaram, pois nunca conseguiram verdadeiramente matar o
judaísmo, que neles permaneceu oculto, mas profundo, tão
profundo quanto profundamente oculto. A prova é este livro
de Miguel Real, que mostra como a tese, a revolta, a
denúncia e a paixão podem coexistir numa obra, criando um
objeto de arte e amor apesar de, ou talvez com a violência
do prefácio. Prefaciou Miguel este livro com a mesma
amorosa ira com que Jesus entrou no Templo expulsando os
vendilhões.
Sentiu algo semelhante, sem saber, a criança que eu fui e
que hoje ainda sou, ao apaixonar-se pelo mesmo, mas ainda
nas palhas. Distinguia-me de Miguel Real um factor
aparentemente decisivo, mas pelos vistos não conclusivo.
Ele era um produto da educação católica, eu não tinha
recebido qualquer tipo de educação religiosa. Mas nenhum de
nós resistiu. No meu caso, àquela criança; no caso dele,
àquele homem. Em ambos, houve uma rendição ao ser que veio
mostrar, não o melhor da divindade, mas o melhor da
humanidade. Veio como espelho cintilante.
Quando, na sala obscurecida das noites de 24 de Dezembro,
aproveitando a azáfama dos meus pais na cozinha em volta
das azevias, eu menininha me sentava no chão adorando o
menino que era o irmão possível para uma filha única, o
facto de ele permanecer ano sobre ano nas palhas sem
crescer e sem partir, sempre fiel à nossa Aliança fraterna,
conferiu-lhe uma eternidade humana que se manteve até hoje,
apesar que ter vindo a perder, com os anos, algumas peças
fundamentais do presépio.
Tive um choque quando li a primeira página do romance de
MR, a página vinte e um. Como se falasse de mim:
“trago um mistério comigo, o meu rosto nunca sorri,”;
“a gravidade e a sisudez são o meu porte, antes de agir
penso duas, três vezes,”;
“estou sempre só, embora as multidões se acotovelem à minha
volta”;
“regras duras, disciplina severa, solidão, pensar o futuro,
louvar o próximo, é assim que atravesso o tempo”;
“são os meus traços essenciais, sentir-me só e estar
triste. O meu sorriso é sempre forçado, menos do que um
sorriso, é um esgar de concordância”;
Não sei se ISTO é apanágio de uma criança com problemas de
identidade, que não sabe bem aonde pertence. No caso de
Jesus, pela dúvida acerca da radical paternidade, no meu
caso, pelo constante deambular de terra em terra desde
tenra idade.
Ou talvez estes sejam os traços escondidos de um judeu, de
uma criança que sabe sê-lo sem conseguir encaixar-se na
totalidade, ou no meu caso, de uma criança vinda sem dúvida
de judeus sefarditas, pois o apelido materno não engana,
mas não recebeu qualquer tipo de educação religiosa onde
possa integrar-se, sendo esta característica mais uma a
acrescentar ao afastamento e à distância das outras
crianças que estava constantemente a deixar para trás, para
reencontrar outras novas nos novos lugares aonde a família
estava permanentemente a dirigir-se.
E, no entanto, há o Amor à Vida seja qual for a forma que
ela assuma, e assim começa, na pequena vida do Jesus ainda
menino, aquilo a que os judeus chamam tikun, o dever de
reparação, começando por si próprio. Quando o
aperfeiçoamento individual toca o mundo, compre-se o tikun
olam. Mas nunca se sabe. Fazer o bem é como uma tômbola.
Este é um dos pontos acentuados por Miguel Real.
Paradoxalmente, é neste trabalho de melhoramento por actos
de bondade que Jesus se apercebe de como, por vezes, o bem
conduz ao mal. Um dia, conta-se nesta narrativa, tendo
Jesus salvado um estorninho ferido pela maldade
inconsciente das outras crianças, acabou por curá-lo e
libertá-lo. Para vir a ser presa de uma águia. Como voltou
a suceder mais tarde, quando, para curar o endemoninhado,
canalizou os demónios para os inocentes porcos, que
acabaram por morrer afogados. O Jesus de Miguel, porque
este é um Jesus segundo Miguel transformado no actual
apóstolo de que Jesus necessitava agora, mais do que um
novo Messias, esse Jesus deste Miguel, prova-nos que antes
do tsimtsum, a palavra grega que expressa a contração de
Deus para que o universo pudesse existir, antes desse acto
de emanação, seguido da criação, formação e acção, já
estava em forma potencial, na não existência, tudo o que
passou a existir, como o tempo, o que permitiu que hoje
mais um apóstolo pudesse dar voz nova a Jesus e através
dele responder às criançs com dúvidas nas aulas de
catequese onde os meninos já adivinhavam o Menino com o
superior conhecimento de toda a perversão que viria a
acontecer por conta da desjudaização de que viria a ser
alvo. Foi afinal o primeiro cristão-novo, e vítima de um
fenómeno de desidentidade (e nós com ele) de um dos
melhores judeus que houve sobre a face da Terra. Assim pôde
Miguel juntar a ira que mostra na introdução, com o amor
que desdobra em todo o romance, o Evangelho de Miguel em
forma de autobiografia de Jesus. Uma parceria perfeita,
porque já contemplando o que o futuro sabe e os textos
evangélicos do passado ainda ignoravam ou ocultavam.
Neste Natal, o meu presépio apesar de despojado das várias
figuras importantes que se foram perdendo ao longo dos anos
culminando em duas recentes, se está mais triste pelas
perdas, será mais rico pela lucidez. Maria permanecerá em
Nazaré, José foi combater na guerra que cria justa, e o
menino a quem atribuíram dois pais nasceu sem a presença de
nenhum e em casa. Neste parto, segundo Miguel Real, houve
sangue e gritos e animais assustados. Só depois “Maria
ajeitou o pão, o queijo e o vinho sobre a esteira térrea e
distribuiu o leite em cuias de madeira para os
cordeirinhos, os pastores sentaram-se no chão admirando o
menino na manjedoura, rodeando-o, aquecendo com o seu bafo
húmido. A porta, como que hesitantes, tinham parado a vaca
e o boi, pareciam sorrir através de um esgar livre,
bafejando menino, as ovelhas e as cabras baliam lindas e
contentes, dobrando os joelhos da frente e encostando-se
aos pastores, as de Maria não a deixavam, rodeando-lhe as
pernas, achando estranho o cheiro exalado entre elas, o
burro ficou metade dentro, metade fora, as lagartixas
entraram à socapa, sem ninguém dar por elas, o lagarto não,
fora um dia pisado por uma vaca e onde estivesse ela ele
não estava, subiu pela parede exterior rebocada a tinta de
cal e pôs-se à janela, os sapos não saíram do poço
enlameado, fugiam de tudo o que era seco, pois precisavam
de água para sobreviver; o bode que acompanhava as cabras
como seu dono recusou-se a entrar quando viu o pastor ali
sentado, de cordeirinho entre as pernas e mão direita presa
no cajado.”
Este presépio, ou esta parte de presépio, ou este momento,
que me faz lembrar o presépio vivo que via em Alenquer em
criança quando ali vivi, se contém alguns dos elementos que
tradicionalmente lá pomos todos os anos, destaca-se pela
presença de animais que faziam parte da fauna de Nazaré na
época do ano do sucedido, o lagarto e as lagartixas, mas
não na época do ano do nosso Natal, de quando nos nasce o
nosso menino Jesus. Por outro lado, há uma alusão carnal ao
cheiro de Maria recém parturiente, e já tivéramos antes a
descrição bem realista e diria mesmo naturalista dos seus
gritos antes do nascer do filho, uma descrição crua e
chocante perante o cenário das músicas dos centros
comerciais, das lojas repletas de gente a comprar perfumes
para serem transportados no trenó do santo da Coca-Cola:
“[a]dona-menina que não cessava de gritar como se estivesse
no matadouro?, as ovelhas, atemorizadas, deixavam escorrer
dejectos nauseabundos pelas pernas, sujando-as, afastando,
por malcheirosas, os cordeirinhos famintos; as cabras
guinchavam, apavoradas, dando pinotes como saltimbancos de
estrada, o bode desferia-lhes marradas, ferindo-as com a
ponta dos chifres, a mãe-cabra, que não tivera partos
fáceis, balia apavorada, o seu instinto materno
identificara nos tremidos da voz da menina-dona o pesadelo
que fora um cabrito entalado no canal escuro da nascença, e
rogou ao Deus chifrudo das cabras que desse uma boa hora à
menina”
Também é de ressaltar aqui a perspetiva dos animais, que
mesmo na adoração do menino, não deixam de proteger a sua
própria pele, como é o caso do bode.
Há a assinalar, igualmente, a ausência do pai José partido
nove meses antes para combater Herodes e os romanos. Este
intervalo temporal é, na ficção, fonte de injustos
equívocos e desconfianças face à honestidade de Maria no
casamento. A verdade é que fora visitada pelo marido nessa
mesma noite, antes da partida. Nem pecado, nem artificial
inseminação divina, mas algo muito humano: o desejo na
noite do casamento: “Maria, de olhos baixos, envergonhada,
disse, José conheceu-me na noite do contrato, quando vim
visitar a casa, estava desejoso.”
Voltando ao presépio, é um presépio caseiro no sentido mais
literal da palavra e não um presépio improvisado durante
uma viagem de fuga. Quanto à presença em massa dos animais,
não poderia haver imagem mais franciscana, afinal foi o
mesmo Francisco que inaugurou a representação deste drama.
Algo distingue, contudo, este presépio daqueles que
conhecemos. Ou talvez não tanto. Sobretudo nos presépios
mais complexos, em escadinhas ou em cascata onde nada falta
da vida do dia-a-dia, o menino passa quase despercebido no
meio da azáfama a que se entregam as tantas outras figuras.
Também neste presépio o menino quase não é mencionado, fica
escondido atrás da sombra da dor da mãe para o ter, e da
enorme comunidade dos animais. Só começa a ter vida própria
depois dos 3 anos, antes disso apenas o que aqui se conta.
Não é canónico, mas talvez não seja falso:
“Contam-me, ainda hoje, que chorei por um mês inteiro, com
as minhas mãozinhas empurrava os seios da mãe, o que a
entristecia. A avó Ana, em visita à filha, gritou-me que eu
era um ingrato, que fazia chorar a mãe, que eu merecia
voltar para as profundezas de onde viera, essa cova escura
do corpo, esse não-ser abissal, mais um dia a chorar
ininterruptamente e ela, já que o pai se ausentara,
convenceria a minha mãe a entregar-me ao rabi para adoção,
mesmo para ser vendido como escravo, sempre fazem algum
dinheiro com a porcaria de um bebé como tu. Quando a mãe
Maria me voltou a pegar, suguei avidamente o seu leite.”
Uma avó muito diferente da minha, também Ana, mas com A de
Amor.
Quanto ao presépio, muito atípico, é um caso típico de
ausência de vinculação ao nascer, não admira que mais
tarde, sob o pretexto de proteger a família, Jesus quase a
tenha renegado.
Hoje tornou-se o símbolo da festa da família, o que não
acho mal, e penso que ele não desaprovaria. Afinal, Jesus
bem sabia como o bem pode conduzir ao mal e vice-versa. Bem
ínvios são os caminhos do Senhor.
Para a Unicepe e todos os seus leitores, votos de um Natal
inspirado e feliz. Com bons livros no sapatinho, na chaminé
ou onde quiserem colocá-los, como é o caso deste livro de
que aqui falo. Porque a nossa necessidade de consolo só
assim se pode satisfazer.
risoletacpintopedro@gmail.com
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