[Trago hoje uma poetisa e um seu livro que apresentei
recentemente na casa Fernando Pessoa. Porque a poesia não
tem sul nem norte, antes é um veículo perfeito para a
comunicação sem tempo e sem espaço. Apesar disso, feita no
espaço e no tempo, e assim deles se e nos libertando.]
“A CASA DA MEMÓRIA”, Maria Azenha
(Sinopse da apresentação)
Lirismo absoluto, apesar de não ser verdade. Militante
verbo também não diz o que é. Misticismo do concreto, tão
pouco. Psicologia da memória está tão longe do que é este
livro de Maria Azenha, como a lua do sol. Um tapete persa
com motivos de Arraiolos constantemente a acolher-nos,
constantemente a enrolar-se e a desenrolar-se aos nossos
pés como vaga, é uma vaga e enganadora imagem destes
poemas. Durante a apresentação deste livro,
experimentaremos desenrolar as páginas do tapete mágico.
Prometo tentar.
Agosto de 2024, Risoleta C. Pinto Pedro
Campo de Almoinha, Sesimbra
O texto acima foi a promessa que fiz na sinopse da
apresentação. Sem arriscar, pois a promessa não foi de
conseguir, mas de tentar. Assim, comecemos:
É esta uma poesia enigmática, não da que leva a desistir,
mas que convida o leitor a entrar no enigma e a enrolar e a
desenrolar o espanto.
Percorro primeiro o índice e encontro, se não me engano no
contar, duas vezes a menina, duas vezes a mãe e duas vezes
o pai. Há também um homem, uma mulher, uma árvore, nuvens e
pássaros e flores, mas as flores têm frio e as árvores
falam. O cenário da casa é a noite e o tempo é de guerra.
Há memória e há Alzheimer. Mas se penetrarmos no livro,
acoitados nos poemas há mais mães e mais pais e mais
crianças e muitos muitos Anjos para todos os gostos e para
todos os desgostos.
Entremos, então.
Encontraremos a menina, e onde as outras crianças brincam
com bonecas, esta menina, que já vem de trás, que já
encontráramos em outros livros da Maria, brinca com
perguntas, que penteia como as crianças fazem às bonecas,
porque sabe que não vai chegar ninguém.
Mas é muito provável que o pente usado para pentear as
perguntas seja o mesmo que penteia os Anjos mortos no outro
poema.
Neste mundo criado ou evocado por Maria Azenha, as coisas
interpenetram-se, as raízes da árvore são as nossas e a
árvore reflete como espelho num mundo onde declaradamente
apenas as bonecas sobrevivem.
As mães parecem ser um bocadinho ingénuas ou ignorantes,
são aquelas que não conhecem coisas importantes como a
biblioteca de Deus ou a idade secular dos Anjos, e os pais
são bons a ponto de abandonarem o sossego da morte para
virem saber do Estado da menina na infância morta. Uma
saga, viagem de herói contada numa surpreendente economia
de versos transformados em epopeia.
A poesia de Maria Azenha é depurada, e cada palavra é única
como a imprescindível e insubstituível peça de uma
construção. Aqui, todos os termos são essenciais e cada
poema é um rigoroso puzzle entre o lirismo, o realismo e o
surrealismo, de uma originalidade exemplar. Por vezes são
narrativas, mas não é possível encontrar ali um único
lugar-comum e menos ainda uma extravagância gratuita. É de
um surpreendente rigor em constante transformação.
Exige do leitor o silêncio eloquente que prolonga sem
completar e sem versos. Como ela escreve, «a três
dimensões».
Usando os mais brutais materiais («cabeça de mulher
encontrada dentro de saco de plástico»), atinge o sublime
(«para que me conhecesses/ entreguei-te a sede do ouro»)
não nos fazendo passar pelas fases intermédias. Atinge
sínteses de causar inveja ao mais perfeito haikai e sabe
dizer coisas que uns entendem e outros não. Estes são os
mais felizes. Maria Azenha vê coisas que mais ninguém vê,
mas constrói imagens tão nítidas que passam a existir: «E
atira pássaros mortos contra limões secos na Lua». Quem
nunca o fez, ainda que nunca o tivesse pensado?
As crianças são aquelas que melhor poderão entender imagens
como: «A teus pés,/ Amor,/ lançarei um cordão de abelhas.»
Não me lembro de ter ouvido mais bela descrição sobre um
funeral de pai, sobre a despedida da mãe, como nas pp 34 e
35.
O olhar é atento a tudo e a todos de quem ninguém quer
saber, arrastando-os por fios de metáfora e assim os
elevando e eternizando. Podem ser uma formiga afogada,
mendigos, uma folha de jornal barato ou uma mulher
estrangeira caída.
A nós, que a lemos, faz surpreendentes revelações e ficamos
a saber e nunca mais esqueceremos nem desejamos que tal
aconteça, que «a morte está cheia de Sol».
Termina com um penúltimo poema intitulado «não tem
importância nenhuma escrever um poema» e como ainda não é
mesmo o poema final, a chave está realmente no último poema
deste livro e tem por título «tudo claro». É a chave, isto
é, não tem importância nenhuma escrever um poema porque, e
este é o poema último «o poeta é um alojado no Coração de
Deus».
A concluir, recomendo a leitura de um ensaio posfácio de
Rogel Samuel que pega neste mote de Maria Azenha “não tem
importância nenhuma escrever um poema” para elaborar uma
interessante reflexão sobre o sentido da poesia e a
liberdade. Convido todos a que façam, também, um poema ou
ensaio, sobre a não importância de escrever um poema, como
se aqui estivesse, e talvez esteja, a chave do mundo pela
mão-poema-pena de Maria Azenha. Contacto directo com o
coração de Deus. Convém não perder o transporte. risoletacpintopedro@gmail.com
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