2024-11-06
“A CASA DA MEMÓRIA”, Maria Azenha


Risoleta C Pinto Pedro




[Trago hoje uma poetisa e um seu livro que apresentei recentemente na casa Fernando Pessoa. Porque a poesia não tem sul nem norte, antes é um veículo perfeito para a comunicação sem tempo e sem espaço. Apesar disso, feita no espaço e no tempo, e assim deles se e nos libertando.]

“A CASA DA MEMÓRIA”, Maria Azenha

(Sinopse da apresentação)

Lirismo absoluto, apesar de não ser verdade. Militante verbo também não diz o que é. Misticismo do concreto, tão pouco. Psicologia da memória está tão longe do que é este livro de Maria Azenha, como a lua do sol. Um tapete persa com motivos de Arraiolos constantemente a acolher-nos, constantemente a enrolar-se e a desenrolar-se aos nossos pés como vaga, é uma vaga e enganadora imagem destes poemas. Durante a apresentação deste livro, experimentaremos desenrolar as páginas do tapete mágico. Prometo tentar.

Agosto de 2024, Risoleta C. Pinto Pedro

Campo de Almoinha, Sesimbra

O texto acima foi a promessa que fiz na sinopse da apresentação. Sem arriscar, pois a promessa não foi de conseguir, mas de tentar. Assim, comecemos: É esta uma poesia enigmática, não da que leva a desistir, mas que convida o leitor a entrar no enigma e a enrolar e a desenrolar o espanto.

Percorro primeiro o índice e encontro, se não me engano no contar, duas vezes a menina, duas vezes a mãe e duas vezes o pai. Há também um homem, uma mulher, uma árvore, nuvens e pássaros e flores, mas as flores têm frio e as árvores falam. O cenário da casa é a noite e o tempo é de guerra. Há memória e há Alzheimer. Mas se penetrarmos no livro, acoitados nos poemas há mais mães e mais pais e mais crianças e muitos muitos Anjos para todos os gostos e para todos os desgostos.

Entremos, então.

Encontraremos a menina, e onde as outras crianças brincam com bonecas, esta menina, que já vem de trás, que já encontráramos em outros livros da Maria, brinca com perguntas, que penteia como as crianças fazem às bonecas, porque sabe que não vai chegar ninguém. Mas é muito provável que o pente usado para pentear as perguntas seja o mesmo que penteia os Anjos mortos no outro poema.

Neste mundo criado ou evocado por Maria Azenha, as coisas interpenetram-se, as raízes da árvore são as nossas e a árvore reflete como espelho num mundo onde declaradamente apenas as bonecas sobrevivem.

As mães parecem ser um bocadinho ingénuas ou ignorantes, são aquelas que não conhecem coisas importantes como a biblioteca de Deus ou a idade secular dos Anjos, e os pais são bons a ponto de abandonarem o sossego da morte para virem saber do Estado da menina na infância morta. Uma saga, viagem de herói contada numa surpreendente economia de versos transformados em epopeia.

A poesia de Maria Azenha é depurada, e cada palavra é única como a imprescindível e insubstituível peça de uma construção. Aqui, todos os termos são essenciais e cada poema é um rigoroso puzzle entre o lirismo, o realismo e o surrealismo, de uma originalidade exemplar. Por vezes são narrativas, mas não é possível encontrar ali um único lugar-comum e menos ainda uma extravagância gratuita. É de um surpreendente rigor em constante transformação. Exige do leitor o silêncio eloquente que prolonga sem completar e sem versos. Como ela escreve, «a três dimensões».

Usando os mais brutais materiais («cabeça de mulher encontrada dentro de saco de plástico»), atinge o sublime («para que me conhecesses/ entreguei-te a sede do ouro») não nos fazendo passar pelas fases intermédias. Atinge sínteses de causar inveja ao mais perfeito haikai e sabe dizer coisas que uns entendem e outros não. Estes são os mais felizes. Maria Azenha vê coisas que mais ninguém vê, mas constrói imagens tão nítidas que passam a existir: «E atira pássaros mortos contra limões secos na Lua». Quem nunca o fez, ainda que nunca o tivesse pensado? As crianças são aquelas que melhor poderão entender imagens como: «A teus pés,/ Amor,/ lançarei um cordão de abelhas.» Não me lembro de ter ouvido mais bela descrição sobre um funeral de pai, sobre a despedida da mãe, como nas pp 34 e 35.

O olhar é atento a tudo e a todos de quem ninguém quer saber, arrastando-os por fios de metáfora e assim os elevando e eternizando. Podem ser uma formiga afogada, mendigos, uma folha de jornal barato ou uma mulher estrangeira caída.

A nós, que a lemos, faz surpreendentes revelações e ficamos a saber e nunca mais esqueceremos nem desejamos que tal aconteça, que «a morte está cheia de Sol». Termina com um penúltimo poema intitulado «não tem importância nenhuma escrever um poema» e como ainda não é mesmo o poema final, a chave está realmente no último poema deste livro e tem por título «tudo claro». É a chave, isto é, não tem importância nenhuma escrever um poema porque, e este é o poema último «o poeta é um alojado no Coração de Deus».

A concluir, recomendo a leitura de um ensaio posfácio de Rogel Samuel que pega neste mote de Maria Azenha “não tem importância nenhuma escrever um poema” para elaborar uma interessante reflexão sobre o sentido da poesia e a liberdade. Convido todos a que façam, também, um poema ou ensaio, sobre a não importância de escrever um poema, como se aqui estivesse, e talvez esteja, a chave do mundo pela mão-poema-pena de Maria Azenha. Contacto directo com o coração de Deus. Convém não perder o transporte. risoletacpintopedro@gmail.com

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