2024-10-09
SERPENTES, MAL E PARAÍSO


Risoleta C Pinto Pedro


Nahash é a palavra hebraica para serpente. É uma palavra masculina, o que desmonta o mito que vem pretendendo associar o feminino ao mal, nesta dupla vertente serpente e Eva. Só que não, como dizem os nossos amigos brasileiros. Isto para começar, porque nem serpente é uma palavra feminina, nem o Jardim do Éden alguma vez foi citado na Bíblia como sendo o Paraíso, nem sequer o mal é como o pintam. O Jardim do Éden é uma coisa, é o que lá aparece escrito, Paraíso é tradução dos gregos. É o problema das traduções, das versões, das interpretações. Convém, nestas coisas, aproximarmo-nos o mais possível da fonte.

Ora Eden, em sumério, significa campo aberto, e a palavra hebraica vem do sumério edin através do acadiano edinnu. Sendo que edin significa planície ou estepe. Parece- me estarmos um bocadinho longe da ideia do Paraíso tão caro aos cristãos.

Ouvi recentemente, a propósito disto, uma anedota contada por um cabalista judeu actualmente a viver em Barcelona, sobre o tema do Paraíso:

Alguém se acercou de um mestre perguntando-lhe como seria a forma mais certa de ir para o Paraíso, tendo-lhe este respondido que observasse os mandamentos, que cumprisse as virtudes e que estudasse muito. Ele assim fez e ao fim de muitos anos de observação das regras, acompanhada de muito estudo, morreu. E foi para o Paraíso. Aí encontrou outras pessoas e todas elas se encontravam mergulhadas em estudo profundo. O Paraíso era uma espécie de biblioteca cheia de livros e de gente a estudar. Ele estranhou e exclamou: “Afinal, andei eu a praticar as virtudes e a estudar para ir para o Paraíso e volto a encontrar-me num ambiente de estudo!” Não tinha percebido, o discípulo, que antes de morrer já estava no Paraíso. Só que o Paraíso não é um valor universal. O que para uns é o Paraíso para outro pode ser um Inferno. Decididamente, uma biblioteca e o ambiente de estudo não era a ideia que este nosso tinha do Paraíso. Com tanto estudo, dera os sinais errados. Por não saber o que seria, para ele, o Paraíso.

Esta anedota veicula a ideia de que Paraíso é aqui, a de que aquilo que fazemos deve ser feito com o propósito de melhoramento do presente, daquele que traz alegria real e consistente ao agora, por responder aos anseios mais profundos da nossa alma, e não a compra de uma felicidade futura. Assim, aquilo que era o Paraíso para os estudiosos que estudavam com o coração, para ele era uma profunda seca. A seca com que preenchera a sua vida e que transportara para a eternidade. A serpente não faria melhor.

Tem isto a ver, igualmente, com a questão do bem e do mal. Nem sempre o que parece bem o é, nem sempre o que parece mal nos prejudica.

Voltemos ao campo aberto, o sentido original da palavra Éden. Remete-me imediatamente para a liberdade, e entra em total contradição com aquilo que seria o Paraíso: obediência total ao criador, abstenção de provar da árvore do mal e do bem. Aquele Jardim, antes da chegada da serpente, devia ser um tremendo tédio. Não havia nada para fazer e nem sequer era possível desfrutar da árvore mais interessante ali existente. Foi apenas depois da chegada da serpente, com a desobediência de Eva, que foi possível aos nossos dois míticos antepassados abrirem os olhos, verem o corpo, despertarem para os sentidos e começarem a trabalhar e a criar. E aqui sim, começou o Paraíso, lugar onde através dos obstáculos foi possível ao ser humano tomar consciência de si e do mundo em torno. Logo, tornar-se adulto e poder experimentar o livre arbítrio. Até aí o ser humano estava refém da obrigatoriedade de se manter incorrupto. Um verdadeiro Inferno.

Desde criança que me debato, como suponho que acontecerá com os meus semelhantes, com o problema do mal. A incompreensão da origem e da necessidade do mal tirou-me noites de sono desde muito cedo. Mais ainda quando passei a reconhecê-lo dentro de mim. Apenas quando comecei a pressentir que não era mais do que uma ferramenta para o meu crescimento enquanto pessoa, deixei de o olhar acusatoriamente e estou hoje a aprender a tirar o maior partido desde companheiro de caminho do qual espero vir cada vez menos a precisar. É um sonho longínquo que me pacifica o viver num mundo tão difícil, tão profundamente difícil.

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