É a pergunta que trouxe de uma peça de teatro a que assisti há uns meses. A
pergunta não tem a ver com este ou outro governo, mas interroga-nos enquanto
modernos cidadãos europeus e do mundo. Fiquei a pensar no assunto. A dificuldade
da resposta é que os métodos são uma lista quase interminável. Façamos o exercício
de elencar o que nos vier à mente:
Mentiras; a alusão à incompetência ou à corrupção de regimes anteriores; o chamar
às coisas o nome contrário; aumentar o grau de insegurança jogando com o medo de
sobrevivência, ameaçando com a crescente pobreza, com sentimentos de impotência,
com a ignorância que permanece e se agiganta em tempos de excesso de informação
que não aprofunda o conhecimento e só confunde o saber, em que a informação é
servida igual para todos e em que cada um deixa de procurar caminhos para os seus
próprios e distintos anseios de saber; nacionalismos quando não são saudáveis, isto é,
quando nada têm de amor à Pátria, mas ódio às outras Pátrias, ou, como alerta
António Telmo, com ambições de titanismo apelando a glórias passadas, outrora
realmente grandes, e hoje ridiculamente manifestadas em arranha-céus e pizzas
gigantes, ou infantilizando a população e transformando as cidades e as suas vidas
em imensos parques de divertimento para estrageiros; jogando com desejos de
vingança, com a atávica inveja humana, com promessas desmedidas de justiça
imediata e radical; instilando a necessidade de uma autoridade exterior que nos
dispense da responsabilidade individual e da cooperação grupal; com o medo do
outro, com o medo do desconhecido; questões não resolvidas com o pai natural
projetadas no desejo de protecção de um pai Estado; e actualmente, com o crescente
anonimato que reduz cada um a dígitos, com o pérfido estabelecimento de padrões de
normalização, com o medo da dor física ou psicológica que aumenta cada vez mais o
número de dependentes de drogas para não sentir, e não me refiro apenas aos que
são oficialmente considerados toxicodependentes, nem aos que, no caminho da
Grande Porta, já não têm defesas que lhes permita, sem o apoio químico, lidar com a
dor. Refiro-me as às pequenas grandes dores do dia-a-dia, às pequenas grandes
dores existenciais para as quais há sempre um comprimido, uma viagem, uma série,
uma bebida, uma distracção qualquer.
O que é importante ressalvar, por muito que doa, é que, a menos que o método tenha
sido um súbito e imbatível golpe militar, a ditadura conta quase sempre com a
cumplicidade mais ou menos inconsciente daqueles contra quem ela se volta. Porque
quando uma população não foi educada para a coragem e para o heroísmo de olhar
as suas sombras, será sempre vitima delas. E o nome de uma das sombras sociais
constantemente a pairar chama-se autoritarismo, o fermento da ditadura. O cofre onde
se vai resguardando ao longo dos tempos está dentro de cada um de nós e a chave é
o medo. Guardamo-lo com cuidados extremados.
O momento actual é bastante explícito, as condições estão reunidas, e é
particularmente inquietante que comece a adquirir contornos internacionais, que o
fenómeno já seja transversal aos países e até já assuma forma de congressos. A boa
notícia é que já começam a desentender-se, e isto devia ser um alerta para os mais
distraídos. Um alerta. Não uma distracção ou um elemento picante para temperar
telejornais, colunas e debates.
A que propósito vem a pergunta que intitula este texto? “Como começa uma
ditadura?”. É uma das frases proferidas por um actor do Teatro da Comuna que
recentemente vi, “23 segundos”. Até ao final da peça a questão não saiu da minha
cabeça. Talvez seja a pergunta mais importante a fazer-se hoje. Temos à nossa volta
(quase?) todos os ingredientes para tal cozinhado. A peça, uma encenação de João
Mota escrita por um autor português, centra-se no período da nossa própria ditadura,
na cela de uma prisão de onde cinco presos políticos tentam escapar escavando um
túnel, sendo que apenas dispõem de 23 segundos para repor a normalidade na cela
antes da chegada do guarda. Texto, encenação e representação são de uma tremenda
eficácia e puseram dois jovenzinhos que me acompanhavam a exclamar, no final do
espectáculo: “como é que a minha família não conta histórias destas?”. Isto, porque a
narrativa, baseada num caso real, é feita, na peça, por uma personagem que se
assume como neta de um dos prisioneiros.
O drama é este: vivemos como se a ditadura nunca tivesse existido e como se nunca
mais voltasse a ser um problema. Mas isto não é verdade. Já se vêem sinais. A nível
mundial, não é possível dizer tudo, sob pena, no mínimo, de olhares enviesados. E
não me refiro à pretensa “liberdade” de fascistas insultarem quem apareça ou não, no
seu caminho, que de liberdade nada tem e não é um direito, pois os direitos acabam
onde começa o direito do outro, neste caso, o direito ao bom nome. Não, é outra coisa
aparentemente inocente, e por isso mais insidiosa, é o medo que já se sente de
proferir opiniões diferentes das da maioria. Existe um bem pensar instituído, e
independentemente de se concordar ou discordar de algumas fórmulas bem-
pensantes, o que me preocupa é que já seja arriscado manifestar um pensamento
divergente. A festa da democracia deve ser um regaço amplo à diferença. Hoje já se
proscrevem e reescrevem livros, mas há umas décadas, autores vinham a ser
perseguidos pelos seus pares por não terem perspectivas alinhadas, por exemplo, da
literatura. Há não muitos anos, chegaram a fazer-se quase “autos-de-fé” públicos. Já
não falo em António Telmo, que assumindo-se fora do sistema, assim defendeu a sua
liberdade e nunca se preocupou com louvores ou aprovações, e por isso, está,
escandalosamente, ausente do Dicionário de Camões. Outros grandes como Fiama,
Helder Macedo e o próprio Jorge de Sena foram e são perturbadoramente silenciados
em tudo o que não coincida com o pensamento dominante. E falo de literatura. Mas
falando de literatura e hermenêutica falo de muito mais, falo do mundo, da vida. É a
literatura que salta para os palcos e nos faz ver o que os nossos olhos
confortavelmente míopes se recusam a descortinar, porque estamos muito bem
instalados nas nossas capelinhas políticas e culturais afastando e olhando com medo
tudo o que nos desinstale, tudo o que nos convide a abrir mais os olhos e a perceber
mais cores.
No fundo, uma ditadura começa com o medo cristalizado em cada um de nós. Entre o
medo do pensamento diferente, e o medo do outro que vem fugindo de perigos ou
procurando o que a nossa sociedade pode oferecer-lhe de diferente para melhor, não
há um abismo. Pelo contrário, o gérmen é preocupantemente semelhante.
E parece-me que o que tem favorecido as ditaduras é que não consigamos perceber
esta horrível semelhança. Porque nos desfeia.
Do regime ditatorial para o totalitarismo, se bem que não sejam a mesma coisa, vai um
saltinho. Por vezes, chega-se ao segundo sem passar pelo primeiro. Convém estar
atento a ambos, aos nossos próprios tiques ditatoriais e totalitários e reler a nossa
história. Aquela que mudou a página, esperemos, em 74. E ir olhando o mundo, tão
próximo, onde partidos inquietantes, aqui tão em casa, tentam redesenhar a realidade
chamando às coisas o seu contrário.
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