2024-07-24
A GRAVE LUCIDEZ DA LIVRE IRONIA


Risoleta C Pinto Pedro



Que têm em comum David Erlich, escritor e professor de filosofia, autor de A Bebedeira de Kant, Maimónides, o filósofo judeu do início da Idade Média, e Alberto Manguel, o escritor argentino de origem judaica, que lia em voz alta para Jorge Luís Borges e passou a viver, a partir de 2020, em Lisboa?

No seu livro, constituído por 50 episódios de História da Filosofia, David Erlich, que partilha com os outros dois autores, a origem judaica, afirma que «apesar de Maimónides ser judeu, a sua obra foi escrita em árabe, já que o mundo islâmico, em plena época de ouro, era dominante» em praticamente toda a bacia do Mediterrâneo. Assim, foi Samuel Ibn Tibbon, quem traduziu, para o hebraico, o Guia dos Perplexos.

Ora, estando eu a ler, paralelamente ao livro de Erlich, o Guia de um Perplexo em Portugal, de Alberto Manguel, aqui encontro dito que embora, como se sabe, a Comédia de Dante (mais tarde apelidada de Divina Comédia, por Bocaccio), tenha sido escrita em florentino vulgar, Dante terá afirmado que a intenção primeira teria sido escrevê-la em latim, sendo as primeiras palavras: “ultima regno canto”. Deste modo ficamos a saber, por Alberto Manguel e por David Elrich, que quer Maimónides, quer Dante, poderiam ter escrito as suas obras numa outra língua.

Para além destas convergências, outros cruzamentos podemos estabelecer, como, e já devem ter reparado, o título do livro de Maimónides: Guia dos Perplexos, e o de Alberto Manguel: Guia de um Perplexo em Portugal.

Ficamos a saber, por este último livro, que só aos oito anos Manguel soube que era judeu, aos treze teve de decorar, para a cerimónia de iniciação por que passam todos os adolescentes judeus, o Bar Mitzvá, fórmula ritual que ainda hoje retém e cujo significado desconhecia quando a memorizou, e refere que embora o exílio de Maimónides por vários espaços, de Sepharad até ao Egipto, passando pelo norte de África e pela Palestina, esteja contaminado pela perseguição e o sofrimento que lhe está associado, assinala que o seu nomadismo, que abrange Buenos Aires, Nova Iorque, Milão, Paris, e agora Lisboa, não foram, nem são, domicílios forçados, mas escolhas. No entanto, reconhece- se, com as peregrinações de Maimónides, também ele «na vivência de paisagens em constante mutação, vozes em mutação, costumes, línguas e céus em mutação.»

Mais interessante ainda, porque é a questão da língua que especialmente me interessa, interroga-se:

«até que ponto estariam estas metamorfoses a influenciar- me, até que ponto a minha maneira de pensar e de interpretar seria transformada pelas mudanças de vocabulário, de tom e de estilo.»

Nesta linha de pensamento, podemos questionar se a obra de Maimónides seria a mesma se escrita em língua hebraica, e quanto à Comédia de Dante, se seria igual escrita em latim. Manguel conclui, no que a si se refere, que «o nomadismo transformou não apenas a forma como leio, mas também a própria identidade dos livros».

E mais à frente:

«Quem não tiver experimentado a impermanência, seja como viajante voluntário ou forçado ao exílio, quem se mantiver enraizado num só lugar desde o nascimento até à morte[…], quem não se importe com nada que não seja endémico (tal como os nacionalistas) – essa pessoa revela um espírito de tal maneira unívoco e uma determinação tão rigorosa que dificilmente se permite a dúvida digressiva ou a curiosidade saudável.»

A não ser, e isto é já a minha colherada, que esse ser imóvel num lugar, dance com a Lua e lhe escute os seus relatos sobre o que vê do outro lado do mundo, e ouça a luz das estrelas trazendo novas do espaço sideral. Mas esses são raros. Por isso é tão precioso este livro de David Elrich, ora amena viagem, ora emocionante exílio, por personalidades, por vidas, por pensamentos, por culturas, por lugares, por línguas, pois para além da história do intelecto humano, ele proporciona-nos as pequenas histórias dos grandes, que nos ajudam a nós, pequenos leitores, a aceder à sua altura e a aprender a relativizar, o que não conseguiríamos fazer se não saíssemos deste lugar. Também Bernard-Henri Lévy, o autor do recém-publicado Solidão de Israel, cita Maimónides e o mandamento do Mishned Torá a propósito da «redenção dos cativos», a «mais sagrada das prescrições». E assim, aceleradamente, viajo de Maimónides até à vertigem do 7 de Outubro de 2024 e não resisto a especular por que razão a sua obra teria sido escrita em árabe, talvez numa esperança inconsciente e antecipada de que um dia viesse a ser lida pelos responsáveis de tal horror.

Na civilizada e riquíssima ágora que é este livro de David Erlich, dialogam modernos e antigos, como é o caso sobre o desejo, entre Martha Nussebaum e Epicteto, apenas para exemplificar.

No meu entender, é o mais sério livro em tom irónico que conheço. Receio, até, que o título, aproximando alguns, possa afastar outros, o que seria lamentável. Mais que didáctico, é pedagógico, pois usa um método infalível para a aprendizagem, para além da argumentação filosófica, que é o humor. O que denuncia um enorme amor. Pela Filosofia e pela liberdade de pensar.

A pedagogia do humor, que alguns professores usam nas suas aulas com muito sucesso, o que este autor-escritor- professor, não duvido, fará, longe de esvaziar o conteúdo, com ele se e nos eleva. Pela nobreza do sorriso, apanágio dos inteligentes.

Há dias resolvi levar comigo o livro para o encontro com um grupo de senhoras residentes de um Lar com quem me reúno semanalmente. Mostrei-lhes algumas histórias aqui contadas, de Tales de Mileto a Gautama e Sócrates, que ouviram com algum espanto e muito interesse. Sobre Pitágoras, li-lhes a parte introdutória do capítulo respectivo, onde é contado que liderava um grupo espiritual que seguia restrições rigorosas e algumas surpreendentes, como a proibição de «urinar voltado para o sol». O que não esperava era que tal restrição tivesse chegado até nós, pois uma das senhoras relatou que na sua infância, em Viseu, também a mãe lhe recomendava que não o fizesse. Isto levou-as a uma acesa reflexão, para além do aparente absurdo, sobre as possíveis e diversas razões de tal proibição, e ainda, sendo que as duas questões podem estar relacionadas, por que razão e de que forma terá este preceito, eventualmente preconceito, ou talvez não, chegado até nós. Não relato as conclusões, pois mais importante, foi toda a reflexão que a história nos proporcionou.

Encontro, ao longo da leitura, um ou outro tema sobre o qual já escrevi, sabendo muito menos que o autor, e por isso usando um ar mais sisudo e muito menos rigor. Por sua vez, David Erlich fá-lo com a seriedade, rigor e precisão de quem sabe e consegue conciliar a reflexão com o libertador sorriso.

Sendo eu da área da Literatura, de Filosofia apenas sei, ou debilmente recordo, o que aprendi no Liceu, ou o que mais tarde encontrei, encantada, nomeadamente em nomes da Literatura que são, ao mesmo tempo, grandes filósofos como Agostinho da Silva e António Telmo. Facto que não é único, como os casos de Popper e Kuhn, que passaram das ciências naturais para a filosofia da ciência, como assinala Elrich. Quanto a Agostinho da Silva e António Telmo, esses filólogos do classicismo, foram eles que me “conduziram” à elite de que também fazem parte, da Filosofia Portuguesa: Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, António Quadros, este último “quase a fazer anos”, como eu e como David Erlich, o mais novo dos três, a 14 de Julho…. (o leitor já se apercebeu de que este texto foi redigido, em parte, antes do dia 14). Ler estes autores foi um deslumbramento que não conhecera no Liceu. E através deles vou “relendo” Pascoaes, Pessoa, Régio, com novas lentes. Não serão necessariamente mais verdadeiras, mas aprofundam- me o olhar. De Agostinho, de cujas Cartas a um Jovem Filósofo David Erlich faz, no seu livro, uma magnífica adaptação, encantou-me o entusiasmo discursivo e criativo, de Telmo, o quão fundo foi e o quão imparcial no pensamento conseguiu ser, talvez por via da razão poética. Todos nós já lemos livros de Filosofia ou da sua História. Uns são escritos por filósofos de formação, outros por filósofos de vocação, que podendo ou não ter recebido instrução formal em Filosofia, são filósofos. Alguns filósofos de formação, isto é, com instrução escolar em filosofia, não são necessariamente filósofos, e embora assim se apelidem, pois partilham os conceitos e explicam- nos, não nos contagiam. Os outros, os que tendo ou não uma instrução académica, nos contagiam, são os verdadeiros filósofos, independentemente do seu percurso de estudos. Agostinho da Silva dizia que não era da filosofia portuguesa, e no entanto…

No caso do autor de A Bededeira de Kant, estamos perante um professor de filosofia que está num percurso académico nesta área e que, para além disso… é filósofo. Não sei se ele concorda comigo, mas o filósofo sabe desarrumar conceitos. O outro não ousa tal, por não estar certo de conseguir reorganizá-los. Coisa que David Elrich faz com fluência e elegância.

Neste livro, os conceitos são apresentados, ao mesmo tempo, com rigor e criatividade, equilíbrio difícil que não é para todos. David Elrich educa-nos e desassossega-nos tirando- nos do sério. Literalmente.

Recorda-nos, actualizando-os em autores novos, ou servindo- os na versão original, conceitos que estudámos e esquecemos e que hoje, nos momentos de dor, nos consolam, como o pensamento dos estóicos. Não resisto a trazer aqui a transcrição que faz do pensador suíço Alain de Botton: «para reduzir a violência da nossa insubordinação contra os acontecimentos que tomam rumos opostos ao que desejávamos, devemos reflectir que também nós temos uma corda à volta do pescoço». Isto, numa alusão à imagem estóica do cão que, atado por corda atrás de uma carroça, ou a segue voluntariamente, ou é arrastado por ela. Quer queira, quer não queira, com menor ou maior dor, sempre terá de seguir a carroça.

David Erlich concilia narrativa mítica ou histórica com exposição conceptual, discorrendo, a partir daí, sobre os filósofos, as correntes e os conceitos.

Seja qual for a doutrina filosófica que tenha a nossa maior simpatia ou que mais oriente a nossa vida, um efeito este livro equânime, mas não neutro, propicia: a inevitável admiração pelos pensadores e pelo fluxo de pensamento com que se foi construindo e, ainda que não pareça, melhorando a humanidade. Mais: fica relativamente evidente, pelo menos para mim, admitindo que possa estar errada, que do ponto de vista ético ou moral, não nos falta pensar muito mais ou muito melhor. As Escolas de pensamento, mesmo quando o parecem, não são assim tão radicalmente diferentes umas das outras, caso contrário, como se explicaria que dois filósofos tão distantes no espaço, no tempo e aparentemente no pensamento, como Kant, a quem pertence a afirmação «Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento» que Erlich relembra, e António Telmo, possam comungar do essencial desta mesma ideia expressa em forma de pergunta? Apesar de o défice de emoção no primeiro, ser compensado, no segundo, pela poética a temperar a razão.

Nesta ordem de pensamento, as mais antigas teorias não são necessariamente mais imperfeitas por incipientes, talvez pelo contrário. Falta-nos, sim (por mim falo), sermos o que já foi pensado. Ler este livro de David Erlich pode ajudar. Mostra como os filósofos, esses benfeitores da humanidade, encheram o mundo de discursos, ideias, teorias, diálogos, a partir de certa altura em forma de livros, sendo que bastaria a melhor frase de cada um, ou talvez apenas a mais pequena asserção de apenas um deles, realmente posta em prática, para mudar o mundo para muito melhor. É que nem sempre a ausência de liberdade e a opressão vêm de fora, a maior parte das vezes somos nós os censores e os carrascos do mais decente em nós, do melhor da humanidade, sempre que o nosso valor central não seja a independência ou a liberdade temperada pelo mais elevado sentimento. Por outro lado, sempre que um conceito tendeu a ser único e absoluto, também não nos demos bem, pelo que não venha o diabo para que não escolha, para que continuemos a tentar e a errar sempre melhor, como já se disse.

A leitura deste livro é deleitosa, fluida e estimulante, o estilo ágil. É bom ler histórias, algumas das quais já conhecidas, recontadas com tanta frescura e ficar a conhecer tantas outras que não se sabia.

Logo no início, a dedicatória. Parei na página, engoli em seco. Se o tom do livro, sendo intelectualmente interessante, é sorridente, a dedicatória comoveu-me, sobretudo a menção ao menino sem nome. Porque, no fundo, foi em parte "isso" que me levou a escrever um livro que um destes dias nascerá para o mundo. Não é todos os dias que se esbarra com pessoas que apresentam as mesmas extravagâncias de alma...

Por outro lado, um dos aspectos mais interessantes deste livro (muito difícil de fazer, mas consegue!) é que divulga sem vulgarizar, não faz concessões ao "vulgo", mas partilha o que deve partilhar.

Este livro, podendo ser classificado, sem muitas dúvidas, como história da filosofia ou divulgação filosófica, rompe o cânone, e embora dando a primazia aos clássicos, pelo critério do tempo, e até aos pré-clássicos pelo mesmo critério, arrasta-nos com o entusiasmo que foi destilando, gota a gota, em nós aprendizes, ao encontro de corajosos pensadores contemporâneos que rasgam fronteiras de conhecimento, como ele preocupados com o futuro por causa da estupidez (expressão minha) do presente e sem nos convidar, desafia-nos, através deles, a observar as árvores e a ouvir as pedras. Também a olhar o céu, sem esquecer os buracos no chão que os pés podem ter de enfrentar, para não cairmos, literalmente, no erro de Tales. Traz, aos mais distraídos, os nomes e as ideias de alguns dos melhores, que conseguem ver em profundidade onde nós nos limitamos a pôr likes e a fazer scroll, no meio da hipnose em que nos encontramos. Traz, juntamente com a IA na Filosofia, as tendências mais recentes e arrojadas do pensamento, o que permite ao leitor usar este livro como um importante e actual roteiro dos mais inovadores autores dos movimentos do pensamento fora da caixa.

É um livro generoso que se dá, que não se poupa, que não poupa o leitor, mas antes o expõe a fortes e contraditórias emoções em que imperam os sorrisos, mas igualmente estupefacção e perplexidade. Convite a uma graciosa bebedeira lúcida na companhia daqueles que têm sido, ao longo dos séculos, os melhores de nós. Pela mão de um mestre de cerimónias chamado David Erlich munido de uma carta de vinhos com nomes surpreendentes como Aristóteles, Hipátia, More, Montaigne, Descartes, Espinoza, Leibniz, Rousseau, Hegel, Marx, Beauvoir, Arendt, e tantos outros, com o de Kant à cabeça, digo, na capa.

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