Que têm em comum David Erlich, escritor e professor de
filosofia, autor de A Bebedeira de Kant, Maimónides, o
filósofo judeu do início da Idade Média, e Alberto Manguel,
o escritor argentino de origem judaica, que lia em voz alta
para Jorge Luís Borges e passou a viver, a partir de 2020,
em Lisboa?
No seu livro, constituído por 50 episódios de História da
Filosofia, David Erlich, que partilha com os outros dois
autores, a origem judaica, afirma que «apesar de Maimónides
ser judeu, a sua obra foi escrita em árabe, já que o mundo
islâmico, em plena época de ouro, era dominante» em
praticamente toda a bacia do Mediterrâneo. Assim, foi
Samuel Ibn Tibbon, quem traduziu, para o hebraico, o Guia
dos Perplexos.
Ora, estando eu a ler, paralelamente ao livro de Erlich, o
Guia de um Perplexo em Portugal, de Alberto Manguel, aqui
encontro dito que embora, como se sabe, a Comédia de Dante
(mais tarde apelidada de Divina Comédia, por Bocaccio),
tenha sido escrita em florentino vulgar, Dante terá
afirmado que a intenção primeira teria sido escrevê-la em
latim, sendo as primeiras palavras: “ultima regno canto”.
Deste modo ficamos a saber, por Alberto Manguel e por David
Elrich, que quer Maimónides, quer Dante, poderiam ter
escrito as suas obras numa outra língua.
Para além destas convergências, outros cruzamentos podemos
estabelecer, como, e já devem ter reparado, o título do
livro de Maimónides: Guia dos Perplexos, e o de Alberto
Manguel: Guia de um Perplexo em Portugal.
Ficamos a saber, por este último livro, que só aos oito
anos Manguel soube que era judeu, aos treze teve de
decorar, para a cerimónia de iniciação por que passam todos
os adolescentes judeus, o Bar Mitzvá, fórmula ritual que
ainda hoje retém e cujo significado desconhecia quando a
memorizou, e refere que embora o exílio de Maimónides por
vários espaços, de Sepharad até ao Egipto, passando pelo
norte de África e pela Palestina, esteja contaminado pela
perseguição e o sofrimento que lhe está associado, assinala
que o seu nomadismo, que abrange Buenos Aires, Nova Iorque,
Milão, Paris, e agora Lisboa, não foram, nem são,
domicílios forçados, mas escolhas. No entanto, reconhece-
se, com as peregrinações de Maimónides, também ele «na
vivência de paisagens em constante mutação, vozes em
mutação, costumes, línguas e céus em mutação.»
Mais interessante ainda, porque é a questão da língua que
especialmente me interessa, interroga-se:
«até que ponto estariam estas metamorfoses a influenciar-
me, até que ponto a minha maneira de pensar e de
interpretar seria transformada pelas mudanças de
vocabulário, de tom e de estilo.»
Nesta linha de pensamento, podemos questionar se a obra de
Maimónides seria a mesma se escrita em língua hebraica, e
quanto à Comédia de Dante, se seria igual escrita em latim.
Manguel conclui, no que a si se refere, que «o nomadismo
transformou não apenas a forma como leio, mas também a
própria identidade dos livros».
E mais à frente:
«Quem não tiver experimentado a impermanência, seja como
viajante voluntário ou forçado ao exílio, quem se mantiver
enraizado num só lugar desde o nascimento até à morte[…],
quem não se importe com nada que não seja endémico (tal
como os nacionalistas) – essa pessoa revela um espírito de
tal maneira unívoco e uma determinação tão rigorosa que
dificilmente se permite a dúvida digressiva ou a
curiosidade saudável.»
A não ser, e isto é já a minha colherada, que esse ser
imóvel num lugar, dance com a Lua e lhe escute os seus
relatos sobre o que vê do outro lado do mundo, e ouça a luz
das estrelas trazendo novas do espaço sideral. Mas esses
são raros. Por isso é tão precioso este livro de David
Elrich, ora amena viagem, ora emocionante exílio, por
personalidades, por vidas, por pensamentos, por culturas,
por lugares, por línguas, pois para além da história do
intelecto humano, ele proporciona-nos as pequenas histórias
dos grandes, que nos ajudam a nós, pequenos leitores, a
aceder à sua altura e a aprender a relativizar, o que não
conseguiríamos fazer se não saíssemos deste lugar.
Também Bernard-Henri Lévy, o autor do recém-publicado
Solidão de Israel, cita Maimónides e o mandamento do
Mishned Torá a propósito da «redenção dos cativos», a «mais
sagrada das prescrições». E assim, aceleradamente, viajo de
Maimónides até à vertigem do 7 de Outubro de 2024 e não
resisto a especular por que razão a sua obra teria sido
escrita em árabe, talvez numa esperança inconsciente e
antecipada de que um dia viesse a ser lida pelos
responsáveis de tal horror.
Na civilizada e riquíssima ágora que é este livro de David
Erlich, dialogam modernos e antigos, como é o caso sobre o
desejo, entre Martha Nussebaum e Epicteto, apenas para
exemplificar.
No meu entender, é o mais sério livro em tom irónico que
conheço. Receio, até, que o título, aproximando alguns,
possa afastar outros, o que seria lamentável. Mais que
didáctico, é pedagógico, pois usa um método infalível para
a aprendizagem, para além da argumentação filosófica, que é
o humor. O que denuncia um enorme amor. Pela Filosofia e
pela liberdade de pensar.
A pedagogia do humor, que alguns professores usam nas suas
aulas com muito sucesso, o que este autor-escritor-
professor, não duvido, fará, longe de esvaziar o conteúdo,
com ele se e nos eleva. Pela nobreza do sorriso, apanágio
dos inteligentes.
Há dias resolvi levar comigo o livro para o encontro com um
grupo de senhoras residentes de um Lar com quem me reúno
semanalmente. Mostrei-lhes algumas histórias aqui contadas,
de Tales de Mileto a Gautama e Sócrates, que ouviram com
algum espanto e muito interesse. Sobre Pitágoras, li-lhes a
parte introdutória do capítulo respectivo, onde é contado
que liderava um grupo espiritual que seguia restrições
rigorosas e algumas surpreendentes, como a proibição de
«urinar voltado para o sol». O que não esperava era que tal
restrição tivesse chegado até nós, pois uma das senhoras
relatou que na sua infância, em Viseu, também a mãe lhe
recomendava que não o fizesse. Isto levou-as a uma acesa
reflexão, para além do aparente absurdo, sobre as possíveis
e diversas razões de tal proibição, e ainda, sendo que as
duas questões podem estar relacionadas, por que razão e de
que forma terá este preceito, eventualmente preconceito, ou
talvez não, chegado até nós. Não relato as conclusões, pois
mais importante, foi toda a reflexão que a história nos
proporcionou.
Encontro, ao longo da leitura, um ou outro tema sobre o
qual já escrevi, sabendo muito menos que o autor, e por
isso usando um ar mais sisudo e muito menos rigor. Por sua
vez, David Erlich fá-lo com a seriedade, rigor e precisão
de quem sabe e consegue conciliar a reflexão com o
libertador sorriso.
Sendo eu da área da Literatura, de Filosofia apenas sei, ou
debilmente recordo, o que aprendi no Liceu, ou o que mais
tarde encontrei, encantada, nomeadamente em nomes da
Literatura que são, ao mesmo tempo, grandes filósofos como
Agostinho da Silva e António Telmo. Facto que não é único,
como os casos de Popper e Kuhn, que passaram das ciências
naturais para a filosofia da ciência, como assinala Elrich.
Quanto a Agostinho da Silva e António Telmo, esses
filólogos do classicismo, foram eles que me “conduziram” à
elite de que também fazem parte, da Filosofia Portuguesa:
Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, António
Quadros, este último “quase a fazer anos”, como eu e como
David Erlich, o mais novo dos três, a 14 de Julho…. (o
leitor já se apercebeu de que este texto foi redigido, em
parte, antes do dia 14). Ler estes autores foi um
deslumbramento que não conhecera no Liceu. E através deles
vou “relendo” Pascoaes, Pessoa, Régio, com novas lentes.
Não serão necessariamente mais verdadeiras, mas aprofundam-
me o olhar. De Agostinho, de cujas Cartas a um Jovem
Filósofo David Erlich faz, no seu livro, uma magnífica
adaptação, encantou-me o entusiasmo discursivo e criativo,
de Telmo, o quão fundo foi e o quão imparcial no pensamento
conseguiu ser, talvez por via da razão poética.
Todos nós já lemos livros de Filosofia ou da sua História.
Uns são escritos por filósofos de formação, outros por
filósofos de vocação, que podendo ou não ter recebido
instrução formal em Filosofia, são filósofos. Alguns
filósofos de formação, isto é, com instrução escolar em
filosofia, não são necessariamente filósofos, e embora
assim se apelidem, pois partilham os conceitos e explicam-
nos, não nos contagiam. Os outros, os que tendo ou não uma
instrução académica, nos contagiam, são os verdadeiros
filósofos, independentemente do seu percurso de estudos.
Agostinho da Silva dizia que não era da filosofia
portuguesa, e no entanto…
No caso do autor de A Bededeira de Kant, estamos perante um
professor de filosofia que está num percurso académico
nesta área e que, para além disso… é filósofo. Não sei se
ele concorda comigo, mas o filósofo sabe desarrumar
conceitos. O outro não ousa tal, por não estar certo de
conseguir reorganizá-los. Coisa que David Elrich faz com
fluência e elegância.
Neste livro, os conceitos são apresentados, ao mesmo tempo,
com rigor e criatividade, equilíbrio difícil que não é para
todos. David Elrich educa-nos e desassossega-nos tirando-
nos do sério. Literalmente.
Recorda-nos, actualizando-os em autores novos, ou servindo-
os na versão original, conceitos que estudámos e esquecemos
e que hoje, nos momentos de dor, nos consolam, como o
pensamento dos estóicos. Não resisto a trazer aqui a
transcrição que faz do pensador suíço Alain de Botton:
«para reduzir a violência da nossa insubordinação contra os
acontecimentos que tomam rumos opostos ao que desejávamos,
devemos reflectir que também nós temos uma corda à volta do
pescoço». Isto, numa alusão à imagem estóica do cão que,
atado por corda atrás de uma carroça, ou a segue
voluntariamente, ou é arrastado por ela. Quer queira, quer
não queira, com menor ou maior dor, sempre terá de seguir a
carroça.
David Erlich concilia narrativa mítica ou histórica com
exposição conceptual, discorrendo, a partir daí, sobre os
filósofos, as correntes e os conceitos.
Seja qual for a doutrina filosófica que tenha a nossa maior
simpatia ou que mais oriente a nossa vida, um efeito este
livro equânime, mas não neutro, propicia: a inevitável
admiração pelos pensadores e pelo fluxo de pensamento com
que se foi construindo e, ainda que não pareça, melhorando
a humanidade. Mais: fica relativamente evidente, pelo menos
para mim, admitindo que possa estar errada, que do ponto de
vista ético ou moral, não nos falta pensar muito mais ou
muito melhor. As Escolas de pensamento, mesmo quando o
parecem, não são assim tão radicalmente diferentes umas das
outras, caso contrário, como se explicaria que dois
filósofos tão distantes no espaço, no tempo e aparentemente
no pensamento, como Kant, a quem pertence a afirmação «Tem
a coragem de te servires do teu próprio entendimento» que
Erlich relembra, e António Telmo, possam comungar do
essencial desta mesma ideia expressa em forma de pergunta?
Apesar de o défice de emoção no primeiro, ser compensado,
no segundo, pela poética a temperar a razão.
Nesta ordem de pensamento, as mais antigas teorias não são
necessariamente mais imperfeitas por incipientes, talvez
pelo contrário. Falta-nos, sim (por mim falo), sermos o que
já foi pensado. Ler este livro de David Erlich pode ajudar.
Mostra como os filósofos, esses benfeitores da humanidade,
encheram o mundo de discursos, ideias, teorias, diálogos, a
partir de certa altura em forma de livros, sendo que
bastaria a melhor frase de cada um, ou talvez apenas a mais
pequena asserção de apenas um deles, realmente posta em
prática, para mudar o mundo para muito melhor. É que nem
sempre a ausência de liberdade e a opressão vêm de fora, a
maior parte das vezes somos nós os censores e os carrascos
do mais decente em nós, do melhor da humanidade, sempre que
o nosso valor central não seja a independência ou a
liberdade temperada pelo mais elevado sentimento. Por outro
lado, sempre que um conceito tendeu a ser único e absoluto,
também não nos demos bem, pelo que não venha o diabo para
que não escolha, para que continuemos a tentar e a errar
sempre melhor, como já se disse.
A leitura deste livro é deleitosa, fluida e estimulante, o
estilo ágil. É bom ler histórias, algumas das quais já
conhecidas, recontadas com tanta frescura e ficar a
conhecer tantas outras que não se sabia.
Logo no início, a dedicatória. Parei na página, engoli em
seco. Se o tom do livro, sendo intelectualmente
interessante, é sorridente, a dedicatória comoveu-me,
sobretudo a menção ao menino sem nome. Porque, no fundo,
foi em parte "isso" que me levou a escrever um livro que um
destes dias nascerá para o mundo. Não é todos os dias que
se esbarra com pessoas que apresentam as mesmas
extravagâncias de alma...
Por outro lado, um dos aspectos mais interessantes deste
livro (muito difícil de fazer, mas consegue!) é que divulga
sem vulgarizar, não faz concessões ao "vulgo", mas partilha
o que deve partilhar.
Este livro, podendo ser classificado, sem muitas dúvidas,
como história da filosofia ou divulgação filosófica, rompe
o cânone, e embora dando a primazia aos clássicos, pelo
critério do tempo, e até aos pré-clássicos pelo mesmo
critério, arrasta-nos com o entusiasmo que foi destilando,
gota a gota, em nós aprendizes, ao encontro de corajosos
pensadores contemporâneos que rasgam fronteiras de
conhecimento, como ele preocupados com o futuro por causa
da estupidez (expressão minha) do presente e sem nos
convidar, desafia-nos, através deles, a observar as árvores
e a ouvir as pedras. Também a olhar o céu, sem esquecer os
buracos no chão que os pés podem ter de enfrentar, para não
cairmos, literalmente, no erro de Tales. Traz, aos mais
distraídos, os nomes e as ideias de alguns dos melhores,
que conseguem ver em profundidade onde nós nos limitamos a
pôr likes e a fazer scroll, no meio da hipnose em que nos
encontramos. Traz, juntamente com a IA na Filosofia, as
tendências mais recentes e arrojadas do pensamento, o que
permite ao leitor usar este livro como um importante e
actual roteiro dos mais inovadores autores dos movimentos
do pensamento fora da caixa.
É um livro generoso que se dá, que não se poupa, que não
poupa o leitor, mas antes o expõe a fortes e contraditórias
emoções em que imperam os sorrisos, mas igualmente
estupefacção e perplexidade. Convite a uma graciosa
bebedeira lúcida na companhia daqueles que têm sido, ao
longo dos séculos, os melhores de nós. Pela mão de um
mestre de cerimónias chamado David Erlich munido de uma
carta de vinhos com nomes surpreendentes como Aristóteles,
Hipátia, More, Montaigne, Descartes, Espinoza, Leibniz,
Rousseau, Hegel, Marx, Beauvoir, Arendt, e tantos outros,
com o de Kant à cabeça, digo, na capa.
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