Estive recentemente no Porto, e uma passagem da biografia
de Ferreira de Castro pelo seu amigo e admirador Jaime
Brasil, veio despertar-me a memória para a primeira vez que
visitei esta cidade. Já não era criança, ao contrário do
escritor de 12 anos quando ali passou a caminho do Brasil,
mas o Porto surgiu-me como uma cidade monumental, sólida e
solene. Ainda hoje a vejo assim.
Regresso à memória de Ferreira de Castro sobre a passagem
pelo Porto, para ir apanhar o barco em Leixões que o
levaria para o Brasil:
«Madrugada ainda escura, tomámos, eu e o sr. Esteves, o
comboio do Vale do Vouga. Era a primeira vez que me servia
de tal meio de transporte e tudo aquilo me causou admiração
e orgulho de mim próprio. No Porto, estacionámos quase todo
o dia numa camisaria da Praça da Liberdade. Nunca mais
esquecerei a impressão que me causou nessas horas a estátua
equestre ali existente. Às quatro da tarde tomávamos o
eléctrico e creio que, depois, um comboio, para Leixões.»
É uma descrição quase relâmpago de uma passagem que durou
um dia! Também não me passou despercebido o facto quase
simbólico de esta permanência ter tido lugar na Praça da
Liberdade, e de a estátua ser a do primeiro Imperador do
Brasil. Ele não lhe faz menção, mas é impossível que, não
digo nos seus doze anos, mas mais tarde, tenha sido alheio
a este simbolismo.
Mais uma vez me apercebi, durante esta recente visita ao
Porto, da importância da toponímia enquanto quase relato
histórico da cidade. Mal se desembarca em Campanhã, toma-se
a rua do Heroísmo. O Porto foi palco importante de lutas
pela liberdade, e a Praça onde esteve o menino Ferreira de
Castro bem o atesta.
Apesar dos perigos para que os tempos actuais, em Portugal
e no resto do mundo, nos alertam, estamos num mês que
renovadamente nos relembra a alegria da liberdade, por
sermos sacudidos pela beleza quase violenta da Primavera e
pela memória sempre doce da revolução. Têm ambas em comum
as flores, o perfume, a criatividade, a renovação, a
esperança, o impulso do renascimento. Mas os valores estão
alterados, as casas da democracia andam mal frequentadas,
os países deixaram de respeitar o direito dos outros à sua
soberania e entram à força e mal educadamente em casa
alheia não lhe reconhecendo, sequer, o direito à legítima
defesa e invertendo os valores, o espirito da guerra desde
sempre latente no mundo aproveita para soltar as suas
garras, vender armas e começar a confundir deliberadamente
solidariedade para com os mais fracos, com estado de sítio,
e até vozes aparentemente e até aqui insuspeitas, começam a
reclamar que se desenterrem os machados, e que homens e até
as mulheres, para algumas coisas protegidas pela sua por
vezes, outras não tanto, consensual inferioridade física,
segundo os interesses, passem a ser vistas como mais valias
para alimentar canhões e sejam recrutadas para serviços
militares obrigatórios, etc, etc, etc.
Ainda há pouco tempo passou em Setúbal e lamentavelmente
não no Porto, que o mereceria, mas muito perto, em
Guimarães, um espectáculo operático intitulado “A
Conspiração da Igualdade” sobre a Constituição de 1911, de
cuja sinopse da autoria do seu libretista, Francisco
Teixeira, tomo a liberdade de citar:
«[…] Dos vários projetos de Constituição apresentados a
debate, destacam-se as “Bases para a Constituição Política
da República Portuguesa”, de António Machado Santos, e o
“Projeto da Constituição Portuguesa”, do Grémio Montanha,
face profana da Loja Montanha, o centro da conspiração
carbonária e republicana, de que o próprio Machado dos
Santos fazia parte e de que era venerável Luz de Almeida.
Estes projetos, porém, onde consta o voto feminino
capacitário, frustrar-se-iam, e com eles a esperança do
voto feminino, prometido pelos homens republicanos às
feministas da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, de
que foram protagonistas Ana de Castro Osório, Carolina
Beatriz Ângelo (a única mulher a votar na eleição
constituinte), Adelaide Cabete e Maria Veleda, entre
outras, elas próprias maçonas da Loja Humanidade, a única
Loja feminina do então Grande Oriente Lusitano Unido, e
traídas pelos seus irmãos maçons, homens, presentes
maioritariamente na Assembleia Constituinte.[…]».
No entanto, elas não desistiram, e como adianta o mesmo
texto de Francisco Teixeira: «Carolina tinha votado nas
eleições Constituintes de 28 de maio, numa luta feroz
contra o regime machista republicano. Era a sua
oportunidade de se vingar, com o corpo e a alma, da
humilhação de ter que requerer a um juiz que pudesse votar,
depois de enviuvar. Ela manipularia a Loja Montanha e Luz
de Almeida, fazendo explodir entre os carbonários o seu
desejo de igualdade de sufrágio, porque o mundo e o futuro
sempre foram femininos.»
As mulheres não precisam de ser enviadas por decreto para a
frente de guerra para fazerem valer os seus direitos e até
os alheios, não é a igualdade bélica que defendem, mas os
tempos andam assim.
O Porto tem uma tradição de rebeldia e liberdade que
sobretudo no período liberal foi marcante para os destinos
do país. A revolta de 31 de Janeiro, embora abortada, foi,
também, a primeira grande ameaça sentida pelo regime
monárquico, e lá está o nome da rua a fazer-nos recordar
que tempos de inconformismo nos trouxeram até aqui. Foi o
Porto a primeira cidade a eleger um deputado republicano, e
quanto à acima referida revolta, ao contrário do movimento
do 25 de Abril, embora apoiada pelas Forças Armadas, não
foi acompanhada pelos movimentos políticos, nem pela
globalidade dos militares. Assim, os revoltosos tiveram de
ceder perante a força monárquica. Contudo, mesmo os
movimentos abortados não deixam de ter a sua
importância. De sucessivas falhas se fazem as vitórias.
A toponímia do Porto é um excelente manual de aprendizagem
da história da liberdade. Não sou simpatizante de se andar
constantemente, segundo os ventos, a mudar nomes às ruas,
até porque tanto pode dar para um lado como para o outro,
mas compreendo a tentação dos momentos históricos para
registar nas pedras acontecimentos marcantes, e lá foi o
Santo António, que dava nome à rua, substituído pelo último
dia de Janeiro. E defendo que é um belo roteiro para se
fazer no Porto, seguir os ventos da liberdade e da
dignidade da cidadania, passeando pelas suas ruas e praças
e olhando para os nomes. As freguesias de Campanhã, Santo
Ildefonso e Bonfim, por exemplo, são disso muito ricas. Não
vou ensinar o padre-nosso ao vigário, pois qualquer
residente do Porto as conhece muito melhor do que eu, mas
por vezes a proximidade afasta-nos, e o facto de se ir de
fora e estar disponível para tudo, de olhos bem abertos,
pode revelar-nos a uma luz resplandecente o que para um
morador faz parte do quotidiano. Ou para um menino de 12
anos a caminho do Brasil, com todo o entusiasmo e medo que
transporta no coração, como foi o caso do pequeno e enorme
Ferreira de Castro.
Tanto, tanto que haveria a escrever sobre isto, mas é
apenas uma crónica, fiquemo-nos por aqui. E celebremos em
todas as cidades, vilas e aldeias, o 25 de Abril com votos
de uma nova Primavera de renovação, apesar das
circunstâncias adversas. Frequentemente, é quando as coisas
estão mais difíceis que nos apercebemos da importância do
que temos, e do perigo de o perdermos. Alerta! Acordemos!
Com determinação, equidade, mas sem distracções perante
perigosas derivas.
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