A grande diferença entre as mães normais e a mãe de Jesus é que
esta não tinha necessidade de cantar ao menino, para o
adormecer, canções de terror. Estou a lembrar-me das nossas
cantigas do papão e de uma que penso ser da Galiza, mas que é,
pelo menos, certamente do norte de Portugal, em que se canta
assim: «Anda durmete nino, que viene el coco, a comer los ninos
que durmem poco». Coco e papão são equivalentes, seres
assustadores que os pais e as mães parecem conhecer muito bem e
com quem demonstram estar em contacto directo, chamando-os quando
se revele necessário, assim como aparentam ter um inquietante
conluio com o Pai Natal, que distribui ou não distribui prendas,
consoante o capricho deles. O mesmo já não sucede com o Menino
Jesus, cujo amor foi e será sempre independente das tentativas
de influência seja de quem for, o obstáculo é apenas a conta
bancária, e mesmo assim o Menino, ou alguém por ele, consegue
fazer milagres. Eu que o diga, que apesar de então não vivermos
na abundância, uma chaminé vazia nunca se me apresentou na
madrugada de Natal, houve sempre chocolates e brinquedos. Em
sóbrias quantidades, mas o amor não se avalia pelo peso. Fora de
casa, também nunca ouvi ninguém ameaçar: Olha que o Menino Jesus
não te dá prendas…, é sempre o Pai Natal que fica com o odioso,
e parece-me bem que o Menino seja poupado, já lhe basta o que
basta.
Acontece que a mãe deste Menino Universal não precisava de o
assustar para o preparar para esta feira de horrores que é o
mundo. Já fugira com ele dentro da sua barriga e até havia um
Herodes a sério no seu encalço. Dispensava outros papões. O
mesmo acontecerá, certamente, com as mães de Israel e de Gaza,
bem como, apenas por exemplo, as das várias regiões de África, é
o caso de Moçambique, junto das quais a realidade fornece tudo o
que as canções de embalar de terror evocam. Papões não faltam
nas suas vidas, e Herodes há-os aos pontapés. Assim como os
meninos que balançam com as fortes vagas do mar Mediterrâneo em
busca de terra firme e segura, não necessitam de mais embalos.
Mas os nossos meninos que se vão deitar sem sono em lençóis de
flanela e edredons de penas e que sabem que na manhã seguinte
terão um banho quente e pequeno almoço, roupa confortável, uma
escola acolhedora e segura, e hospitais, que por muito mal que
funcionem, não correm o risco de ser bombardeados, nem os locais
de trabalho dos pais tão pouco, esses meninos e meninas bem
precisam de cantos de inquietação, e que o Menino lhes empreste
um bocadinho o Herodes, nem que seja a fingir, porque, afinal de
contas, mesmo num mundo tão seguro com aquele onde vivem… nunca
se sabe. O ímpeto de domínio e hegemonia é desmedido, e a
loucura anda descontrolada. Religiões deixaram de ser consolo
para se aliarem aos poderosos, os seus líderes são terroristas
paramentados. O extremismo político e outros começam a mostrar a
cabeça e o que julgámos passado já não estamos assim tão seguros
de que o seja. Apetece mostrar a todos os jovens o filme O
Pianista, sobre o gueto de Varsóvia, para que saibam, para que
não esqueçam, para que estremeçam, para que reconheçam os
sinais, independentemente de onde vierem. Horror é horror e não
tem religião, nem rosto, nem ideologia. Qualquer uma lhes serve.
O Natal sossegado do presépio corre riscos e nunca ninguém diga
que o Menino sobre as palhas douradas já está seguro, agora que
habita as nossas casas civilizadas de ocidentais. Não está,
nenhum o está, nunca o está. A não ser que os muitos adultos
anestesiados cantando canções de embalar, acordem mesmo e tomem
decisões que teimam em delegar, entregando aos poucos a condução
das suas vidas adormecidas. Porque o padrão, numa coisa, é
sempre igual: poucos tentando, e conseguindo, dominar muitos.
Tem resultado. Apesar da ilógica matemática. Enquanto os muitos
andarem de consciência perdida.
Enquanto o padrão não muda, amigo(a) leitor(a), vem aí o Natal!
Apesar dos nossos problemas, e porque tudo é relativo, vivemos
num Paraíso, por isso, sem esquecermos quem sofre, alegremo-nos
com o que temos e não é pouco. Aledámonos, como dizem os nossos
irmãos galegos, e é tão bonito!
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