2023-11-08
HELENA E OS INFORMAIS BENFEITORES DA HUMANIDADE


Risoleta C Pinto Pedro



Regressemos a Helena, com quem em tempos me entretive em longas conversas a que chamei “Diálogos com Helena à beira-rio”. Foi à vista do rio que voltámos a encontrar-nos e ela me contou factos da cidade de forma impressiva e viva.

Quando deambula entre compras e casa, vai-se apercebendo dos rostos. Os rostos das cidades, diz ela, são belos, deslumbrantes e terríveis. Alguns, caricatos. Ao descer a rua da Selva Espessa, uma espécie de bobo bem-disposto e desempregado por falta do rei que sempre corresponde ao sandeu, extremos ambos de uma mesma coisa, ali permanece na esquina, e ela desconfia que se lá passar a improváveis horas lá o encontrará com sua aparelhagem explodindo músicas populares, dançáveis e brejeiras, ostentando um sorriso gratuito de quem vive para ali estar a alegrar o povo. De certa forma, mau-gosto à parte, comovente espécie de serviço público de graça numa Graça cada vez mais sofisticada e estranha, de estrangeira. Um Zé-Povinho persistente e sorridente, na sua missão de manter, da forma que sabe, o que considera genuíno, ainda que muitas vezes a música seja brasileira. Contudo, é a única concessão que faz ao estrangeiro, talvez por estar nas suas raízes o português. A um espontâneo “folclorista” em tempo de crise, não se pode exigir mais. Faz o que sabe e pode. Devotadamente, serviço cívico sem pedir nada a ninguém. Sorri, cumprimenta e difunde.

Um pouco mais acima, já na Rua da Sublime Visão, a meio, um jovem ruivo de cabelos longos como um apóstolo, senta-se todos os fins de tarde no portal da casa. Poderia ser confundido com um anjo, se tivesse as vestes apropriadas. Por trás dele, um cortinado negro com misteriosas pinturas entre o branco e o cinzento, separa a rua do interior da casa, mantém privado o que deve ser protegido, apenas permitindo a saída do som. Helena traz ainda nos ouvidos as músicas plebeias e já, ao início desta outra rua, outros sons se misturam, e à medida que sobe, se sobrepõem até imperarem no ar. Um rock clássico e conservador, progressivo e psicadélico, blues, músicas das décadas de sessenta e setenta, que nem sempre correspondendo às escolhas musicais de Helena, são, claramente, de assumido bom gosto. O trovador, à porta, não canta, não toca, mas a partir de uma aparelhagem que quem passa não vê, distribui músicas de outro espaço e tempo, que juntamente com um sorriso espantosa e surpreendentemente doce formam, com o tão diferente parceiro de baixo, uma espécie de serviço público de alto gabarito, gracioso e mais uma vez gratuito. Passámos da ingenuidade da selva à formosura da inocência que sugere o sorriso quase cúmplice que oferece ou devolve a quem passa e não se alheia do que ouve, como se percebesse a compreensão, a sintonia, a gratidão de quem se cruza com ele à passagem pelo seu portal. Agora que o tempo arrefeceu, fecha a porta e entreabre a janela sobre cujo parapeito coloca uma planta a sorrir, pois, imagino eu, já que não o vemos a ele, não quer que nos falte nada. À janela a planta substitui o dono, do interior continua a vir a música.

São ambos informais benfeitores da humanidade. Sustentam o mundo. Por essas ruas, Helena cruza-se, por vezes, com uma elegante figura feminina acompanhada de um cão e um cesto de compras estilizado. Tem sempre uma palavra amável e de misteriosa compreensão daquilo que não se vê. Ela própria é música, não há outra forma de descrevê-la. Formam os três, os dois disc-jockeys e ela, um mundo encantado onde nada falta, nem a simpatia, nem a música, nem o mistério. Aparentemente são de mundos diferentes, mas formam uma nebulosa afável, amável e firme que mesmo que algum destes mundos se mude algum dia para um outro lugar, deixa, indelével, sua marca, e a nebulosa não se desfaz, como as pedras de um colar suportado pelo Incriado.

Mas continuemos a subir com Helena até à sua rua, a Viela do Pomar Gentil. À janela, uma personagem de contos de terror assusta a rua de todas as maneiras, ora grita e insulta, ora vem cá abaixo discutir com os caixotes de lixo ou com quem passa, e o nome mais carinhoso que os moradores conseguem dar-lhe é Ogre. Não sabem como se chama, mas este nome assenta-lhe bem. No mês de Natal passa a ser o detestável Ebenezer Scrooge, o personagem de Dickens que não suporta ver os outros felizes. É o caso do infeliz Ogre do terceiro direito da bela Viela do Pomar Gentil. Que estiver mais atento vê, sob o esgar de mau humor e o porte rígido e arrogante de quem parece ter engolido meia dúzia de canas, o choro de um menino antigo. Os cães, indiferentes a psicanálises de bolso, ladram-lhe, ele grita com eles e tenta dar- lhes pontapés. Quanto aos vizinhos, uns protestam, outros ignoram-no. Há quem o cumprimente, como se faz a uma pessoa normal. Mas ele não entende, porque não se considera uma pessoa normal. O facto de viver num terceiro andar, porque não há mais nenhuma razão para tal, confere-lhe interiormente um estatuto de guarda do castelo. Às vezes aparecem pessoas com ar misterioso, talvez gente das leis, perguntando pelo estranho ser; nessas alturas esconde-se e durante algum tempo ninguém o vê. Os moradores da rua suportam-no com custo, mas no fundo sabem que num mundo onde não há almoços grátis, ele é o preço que têm de pagar pelos outros três. Por enquanto, o equilíbrio do mundo vai-se fazendo assim. Por três bons, um ogre. Futuramente, a equivalência alterar-se-á e passará a bastar um bom por cada três infelizes Scrooges. Depois vai ser sempre a melhorar. Mas na eternidade o amanhã leva tempo, por isso cada um vai apurando o seu sentido de humor como pode. Com música, de preferência. Lá mais longe, ainda no início da Rua da Selva Espessa, por vezes, ouve-se um saxofone. E o menino, regressando da escola, canta, espantando os males, os ogres e a gravidade dos adultos. Afinal, os benfeitores da humanidade são mais do que pareciam. É preciso é saber ouvir e ver.


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