2023-10-11
UMA CRÓNICA ESTRANHA, UMA CONVERSA INESPERADA, UM PEQUENO ENSAIO SOBRE A INVEJA


Risoleta C Pinto Pedro



Há algo comum a todas as minhas saídas, a todas as visitas a novas cidades. Ando que me desunho, quilómetros a perder de vista. Acontece cá dentro, foi o caso recente do Porto; acontece lá fora, foi o caso recentíssimo de Madrid. À noite, o aportar ao quarto traz muitas dores. Quem dera ali um massagista, um “personal trainer” que me dissesse o que fazer para suavizar o cansaço muscular, embora os “personal trainers” sejam mais treinados para aumentá-lo, pelo que já ficava satisfeita se tivesse um que me encorajasse a fazer os habituais exercícios do final do dia. Mas existe sempre a esperança.

Estava em Madrid, como já disse, no McDonald’s. Na mesa ao lado, um jovem brasileiro falava ao telemóvel com alguém. Não fiz nada para ouvir, mas era impossível evitá-lo, estava mesmo ao meu lado e falava muito alto. Ao princípio fiquei perplexa. Era uma conversa estranha, o rapaz dava ordens ou instruções de tipo físico, do género de levantar pernas, e coisas semelhantes. Era, no mínimo, surpreendente, mas com a continuação percebi do que se tratava, o que só poderia ser. O rapaz era um “personal trainer” e estava a dar indicações, sabe-se lá para onde, a quem, sobre movimentos e exercícios físicos. Falava, sem dúvida, com algum cliente. À hora do almoço, a uma mesa de McDonald’s no centro de Madrid. Fazia-o com o maior profissionalismo, se é que tal se pode afirmar em relação a uma aula tão original. Fiquei com uma certa inveja, pois tenho de ser eu a minha “personal trainer”, e quando estou com preguiça é muito difícil persuadir-me a mim mesma que tenho mesmo de fazer o que é importante que eu faça. A preguiçosa costuma levar a melhor à “personal trainer”. Decididamente, não sirvo como treinadora de mim mesma.

Mas há uns dias, quando lia umas recomendações acerca da melhor maneira de fazer caminhadas, descobri que afinal tenho não um, mas três “personal trainers”. Vejamos: nos primeiros 15 minutos deve-se andar devagar e depois é que se acelera. É exactamente o que eu faço, mas não sabia que era o certo.

Nos primeiros quinze minutos tenho de esperar que os meus “treinadores” façam cocós, xixis, e cheirem cada milímetro de parede, candeeiros e chão. Avançamos a um milímetro à hora. Só depois consigo que andem a sério, a bom ritmo e sem paragens para cheirar. Afinal, tanta inveja para nada, já tinha o que não sabia. Isto é o que normalmente acontece aos invejosos: invejam o que pensam que não têm, mas que na verdade têm e por vezes até mais e melhor, apenas diferente. Foi necessário ir a Madrid almoçar a um McDonald’s para saber que tenho tudo aquilo de que necessito. McDonald’s de onde saí com fome, porque não havia nada do que eu queria, nem sopa, nem vegan, nem sem glúten, apenas uma modestíssima, diria mesmo austera, quase franciscana salada. Que atrasado está o Mac McDonald’s de Madrid! No que respeita a civilização estamos muitos passos à frente, temos é muito menos árvores nas cidades, um pormenor irrelevante, a avaliar pela manifestada unanimidade nacional, mas também não se pode ter tudo. As pessoas andam muito exigentes! Árvores nas cidades? Se tivessem árvores não eram cidades, eram florestas. Querem árvores? Vão para o campo! Ou então vão a Madrid, que fica bastante perto. E o McDonald’s, se tivesse comida vegan, não era o McDonald’s, era um restaurante vegetariano. Vamos lá ver se nos entendemos. Esta mania de querer melhorar o mundo, há-de passar! Ou então iremos sentir-lhe a falta quando o mundo já não tiver ponta por onde se pegue e já nem com um contingente de “personal trainers” lá conseguirmos chegar!

Esta viagem serviu para descobrir:

- que sou invejosa;

- que não tenho a mais pequena razão para o ser.

Madrid valeu por muito mais, mas só por isto e pelas árvores, já teria valido a pena.


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