2022-05-18
Asceses e... asceses


Risoleta C Pinto Pedro




«E como sabemos que a tradição compara ao homicídio o crime de difamação [...], podemos compreender quanto a via é estreita e quanto a ascese é rigorosa para quem não quer "temer a verdade"»

"Prefácio" in: A Cabala e a Tradição Judaica,
René de Tryon-Montalembert e Kurt Hruby
Ed. 70, Colecção Esfinge, Lisboa, 1979.



Já que falamos em ascese, recordemos aquilo que normalmente nos evoca a palavra: privação. É um tema que nos assalta hoje, quando vemos imagens da guerra com pessoas que não têm, literalmente, nada para comer ou beber. Os místicos usaram-na muito ao longo dos séculos A ascese (do grego: ἄσκησις, áskesis, é considerada um "exercício espiritual", derivado de ἀσκέω, que significa "exercitar") consiste em práticas do corpo com o intuito de desenvolvimento espiritual, e muitas vezes baseadas na renúncia aos prazeres e às necessidades básicas, como o sono e a alimentação, conduzindo mesmo a maus-tratos à saúde. No caso que acabo de citar, nada tem de voluntário, é uma ascese sofrida quase como uma maldição divina ou pelo menos com um sentimento de enorme perplexidade e incompreensão. Em termos voluntários, na mais plena liberdade, não será fácil, mas é possível esta prática. Muita gente a tem empreendido. Contudo, um outro tipo de ascese, bem mais difícil, porque fora do controlo da mente, é o hábito da difamação. Esta pode ter formas tão subtis, que mal nos damos conta dela. Pode ir da acusação explícita, à leve sugestão. É um vício que adquirimos desde a infância. Quem se julgar livre dele é melhor tomar cuidado, talvez esteja ainda mais prisioneiro do que outros que o sabem, e sabendo, o fazem. Mais fácil para estes, no dia em que decidirem libertar-se.

É um tipo de ascese, como se afirma na citação acima. A ascese da via estreita, muito rigorosa. Mais fácil é deixar de comer do que deixar sair aquilo que nos queima por dentro e de que não sabemos desenvencilhar-nos de outra maneira. Por isso, os místicos consomem o corpo. Para que não tenha forças para a prática da difamação. Entretanto, procuremos outras formas mais fáceis e menos inimigas da nossa vida. Que quanto a homicídio, já basta aquele que praticamos na difamação alheia.

No conto tradicional, o sapateiro, para não contar o que sabia do príncipe, fez um buraco no chão e gritou lá para dentro o seu segredo. Outras pessoas, ao longo dos séculos, foram usando a confissão religiosa, actualmente substituída pelo psicólogo ou pelo psiquiatra. Mas há também a confidência a um amigo discreto e fiável, actualmente substituído por uma comunidade de milhares de pessoas, como é o caso das redes sociais, onde muitos se confessam. E difamam.

Mas o mais difícil e interessante é mesmo guardarmos para nós mesmos o que não pode servir de bem ao mundo. Se nos for pesada, podemos sempre imaginar a coisa a desfazer-se no ar a um estalido dos dedos. Ou soprarmos para dentro de um balão que soltaremos em direcção ao céu. Na pior das hipóteses, poderá sempre voltar para a terra sob a forma de chuvas ácidas. Quem sabe se não são isso mesmo as chuvas ácidas: segredos que não conseguimos guardar... Tem, contudo, este método, a vantagem de ninguém conseguir decifrar a linguagem da chuva, ao contrário do canavial que nasceu no buraco soprado pelo sapateiro, onde nasceu uma cana depois transformada em flauta que cantava o segredo: "O príncipe tem orelhas de burro!". Isto acontecia num tempo em que só os príncipes belos, bondosos e inteligentes tinham orelhas de burro. Hoje, todos se consideram príncipes e todos têm orelhas de burro. Não é fácil distinguir os verdadeiros, no meio da multidão de aspirantes à realeza.


risoletacpintopedro@gmail.com

http://aluzdascasas.blogspot.com/
http://diz-mecomonasceste.blogspot.com/
http://escritacuracriativa.blogspot.pt/
http://www.facebook.com/risoleta.pedro
https://www.facebook.com/escritoraRisoletaCPintoPedro/
http://aluzdascasas.blogspot.com/2020/03/o-vale-do-infante.html
http://risoletacpintopedro.wix.com/risoletacpintopedro

LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS