2006-07-05
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Reflexões sobre a língua 3       





Por outro lado, há que distinguir entre língua e linguagem, e para estas coisas não há como ir ao dicionário:

Língua é o idioma de cada nacionalidade, ou, segundo Saussure, o sistema abstracto de signos inter-relacionados de natureza social e psíquica, obrigatório para todos os membros de uma comunidade linguística.

A prova disto é que, mesmo a língua gestual usada pelos surdos é diferente de país para país.

A linguagem é, segundo o dicionário, qualquer sistema de comunicação de ideias ou sentimentos através de suportes convencionais: sonoros, gráficos, gestuais, etc.

Isto coloca-nos algumas perplexidades, porque, se por um lado a linguagem tem um carácter mais lato, é a própria possibilidade de comunicação, por outro lado todos os partidários de linguagens particulares ou minoritárias, como a gestual, ou o mirandês, por exemplo, defendem que se trata de línguas e não de linguagens, apelando, ora para o carácter sistemático, num dos casos, ora para o carácter escrito, no outro. E quer um caso quer o outro, pressupõem uma menoridade da linguagem em relação à língua, quando não é assim. A linguagem está mais próxima do sagrado. A prova é que podemos falar em linguagem poética, uma das mais próximas do sagrado, e nunca em língua poética.

Mas existem muitas confusões, ou, pelo menos, divergências de opiniões, à volta deste tema. Às vezes fala-se nos conceitos sem se pensar suficientemente sobre o assunto. Segundo alguns, pensamento e linguagem são uma e a mesma coisa. Mas também aqui temos que distinguir a actividade mental do pensamento, ou o pensamento consciente do inconsciente. Vejo o pensamento inconsciente mais relacionado com a linguagem e o consciente com a língua.

A língua é um processo mental de manifestação do pensamento e de natureza essencialmente consciente, significativa e orientada para o contacto inter-pessoal. Apesar do processo da língua ser essencialmente consciente, entretanto entende-se que existe um nível inconsciente, a linguagem, e o fluxo e a articulação desta provém de camadas mais profundas e não conscientes, tais como do subconsciente e inconsciente, é o caso dos actos falhados.

Como Adorno, eu acredito que as palavras podem transformar a realidade, e a língua, sustentada por um forte inconsciente simbólico, pode ter uma função mágica, e cito-o: «sob o olhar das suas palavras, tudo se transforma, como se se tornasse radioactivo».

Por vezes a arrogância humana leva-nos a acreditar que somos os únicos a dominar linguagens, mas a Criação não é mais que um sistema de linguagens, por vezes bastante hermético, a partir de um dado momento bastante generoso na transparência. É quando nasce a sabedoria.

E toda a linguagem humana comunica a essência espiritual que lhe subjaz. É a linguagem como magia.

Derrida, por sua vez, procura «um outro tipo de escrita, uma escrita violenta que demarque as falhas e desvios de linguagem; de modo a que o texto produza uma linguagem dele próprio, nele próprio, que, enquanto continua a operar através da tradição desponte num determinado momento como um monstro, uma mutação monstruosa sem tradição ou precedente normativo.»
Isto acontece actualmente com a literatura contemporânea, que nunca antes foi tão inventiva e inovadora, vide Saramago na pontuação, Mia Couto nos neologismos, e muitos outros. Derrida, acima de todos.

Quanto a Chomsky e à concepção de que a linguagem é um processo criativo, isso aplica-se tanto à língua como ao desenho. As crianças não constroem frases copiando a fala dos adultos nem aprendem a desenhar imitando os desenhos dos adultos, mas o processo apresenta constantes observadas em todas as crianças e em variadíssimas culturas. Assim, nem o desenvolvimento da linguagem nem o do desenho é completamente original e individual. O processo é ao mesmo tempo criativo e matricial.

Cada criança balbucia as primeiras frases e dá os primeiros passos sempre de forma inesperada, o que mostra que o padrão é, por um lado linear e por outro misterioso.

Apenas isto explica que as crianças inventem palavras e expressões de uma forma absolutamente genial, como apenas os poetas ousam; recordo-me de dois casos, em que a minha filha, muito pequenina falava em “sabor azul” sem fazer ideia do que era uma sinestesia, e usava muito a palavra “suável”, que percebi, depois, ser um misto de suave e agradável.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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