2006-06-07
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Pedro Morais no Museu de Serralves      





“Locus Solus III- Um muro oco de cal pintada e água corrente

“Dokusan III- Lâmina e anamorfose em parede caiada”

Isto não é crítica de arte, porque não a sei fazer e não me apetece aprender. É apenas uma espécie de relatório afectivo de uma experiência que vivi num espaço de arte, ao ser confrontada com dois “objectos” artísticos.

À primeira vista deparamos com algo que parece ser uma obra ao branco, a segunda fase do processo alquímico, o albedo, através da brancura da cal em parede, em ambos os casos. No primeiro a alquimia faz-se com a água e o ar, no segundo com o metal e a luz. Nós levamos a contribuição que consiste no barro que somos e no fogo em que nos transformaremos.

“Locus Solus III”, que pode ser visitado na Álea dos Liquidambares, é um koan; coloca-nos perante o mesmo problema de todos os koan: como resolver o que parece inconciliável? Como harmonizar as informações contraditórias que nos chegam ao cérebro através dos sentidos?

O mestre bate as palmas e ouve-se um som; o mestre pergunta: “onde está o som de uma só mão?”

Aqui, os olhos mostram uma água parada, os ouvidos reproduzem o som de água em movimento. Onde está o som da água imóvel? Em que ponto do corpo se resolve (ou supera) esta contradição?

Percebi, no local, que o problema não estava na água, que estava, como sempre, em nós, e que apenas o conseguiríamos resolver com uma subtil e poderosa operação ao cérebro ou… ao coração. Deve ter sido essa a razão pela qual passámos por esta “pintura a três dimensões” (em expressão do autor) e não pudemos deter-nos nela, embora na altura tivéssemos pensado que era por causa da presença de um funcionário em trabalho de manutenção. Essa foi a “forma” que vimos, o “obstáculo” exterior que apenas espelhava o obstáculo dentro de nós, como sempre acontece em todas as situações da vida: simplesmente não estávamos (ainda) preparados, não era o momento!

Prosseguimos e fomos visitar, na capela da Casa de Serralves, “Dokusan III”, ou o que os nossos olhos despreparados começaram por ver: uma monumental lâmina do sabre de um samurai. A lâmina parece fixada à parede, e ao fim de algum tempo começámos a ver, projectados sobre a mesma parede, formas luminosas geométricas rectas provenientes de um desenho de 10 pontos. Isto foi o que os nossos olhos conseguiram ver: a ilusão. Mas o autor, que, privilégio nosso, nos acompanhava, pediu-nos que permanecêssemos pelo menos quinze minutos. Não foi difícil corresponder ao desafio, porque há algo naquela espada e nas luminosas figuras dançarinas que atrai, como um íman. Compreendemos por que razão quinze minutos era o tempo mínimo para haver tempo em nós e ter efeito, o invisível processo cirúrgico. É quando começamos a ver a “outra” realidade, digo, a realidade, isto é, que a lâmina não está imóvel (que a água lá fora não está imóvel, que a terra não está imóvel, que nós não estamos imóveis, ou descemos ou subimos, mas imóveis não estamos porque tal não existe, até os cadáveres se transformam), que o cabo que não vemos, do sabre, rodopia manipulado por mão invisível a uma velocidade superior à capacidade do nosso olhar.

A lâmina tem uma aura (imediatamente visível, ao entrar) que não lhe permite comportar-se como uma lâmina comum, não fere a pele, não foi feita para isso, é um sabre para abrir corações à velocidade do milagre.

Por isso vemos a lâmina imóvel, mas o samurai roda sobre si mesmo como luz, trespassa-nos sem que o sintamos, é o cirurgião de que necessitávamos, e a cintilação ou o reflexo projectado na parede é apenas a luminosa sombra da dança do aço de cada vez que trespassa o nosso coração, assim criando uma geometria estelar.


Nota 1: Impossível não referir e agradecer a simpática e acolhedora recepção e introdução à visita, do director do Museu, João Fernandes, num dia (anterior ao fim-de-semana aberto) sem mãos a medir.


Nota 2: Igualmente impossível não mencionar a excelente exposição de António Dacosta com obras que nem sempre têm estado acessíveis ao nosso olhar.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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