2006-05-10
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


“…SEM AZEDUME…”      






“[…]
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!”

      in “Contrariedades”, Cesário Verde

Sessenta anos mais ou menos, óculos de lentes graduadas, jeans, camisa, blusão, baixa, silhueta esbatida de quem já há muito desistiu da silhueta. Traz um saco grande, uma mala e mais um saquinho. Vem sentar-se à minha frente numa enorme carruagem de comboio quase vazia, sempre muito agarrada às asas do saco, da mala, do saquinho. Pergunta-me se o comboio pára em Santarém, respondo-lhe que sim, depois pergunta-me se, lá chegada, o nome da estação é visível, digo-lhe que sim, depois pergunta-me ainda se a porta abre automaticamente, respondo-lhe que sim, tranquilizo-a, se isso não acontecer, eu abro-lha. Relaxa um pouco. Inicia uma conversa, mais como quem se confessa. Levanta-se todos os dias às quatro da manhã para ir trabalhar, regressa às oito da noite, tem um filho de trinta anos em casa, no desemprego, há um ano. Vai passar quatro dias de férias a casa de uns familiares, para espairecer. Imagino-a a deixar o almoço para o filho, antes de sair. Imagino o filho a levantar-se ao meio-dia, para almoçar.

Ela traz um jornal na mão, desses que distribuem no metro, estende-mo para que o leia, diz que não tem paciência. Está, nitidamente, ansiosa. Aceito o jornal, abro-o distraidamente, também não estou com paciência para aquele jornal, diletantemente passo os olhos pelas páginas pelo horóscopo, procuro imaginar qual será o dela, estou quase para lhe perguntar, mas sei lá que mais ansiedade vou eu despoletar, e devolvo-lho. Quer que eu fique com ele. Agradeço e recuso. Fecho os olhos, de vez em quando abro-os e vejo o olhar dela ansiosamente a perscrutar o meu rosto, receando, talvez, que adormeça e deixe passar Santarém. Tranquilizo-a: que não durmo, ainda falta um bocado.

Eis-nos chegadas a Santarém, o comboio pára, a porta abre-se, ela sai, depois de me agradecer muito nem sei bem o quê. Já cá fora, procura-me na janela, acena como quem se despede de uma segurança qualquer, como uma criança desamparada. Lá vai com os seus três sacos. Não vai formosa. Não vai segura. A que horas se levantará durante estes quatro dias?

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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