Risoleta Pinto Pedro
A voz
Doce, aveludada (Como se diria, se fosse vinho? Frutada? Como se diria se fosse beijo?), serena, rigorosa. Primeiro parece irreal, uma voz assim saída de um ser humano. É mais como um sopro ou um beijo ou um segredo dos deuses. Imagino as cordas na garganta: seda pura bordada a veludo púrpura.
As vozes de contra tenor possuem em geral uma magia de tempo passado ou de impossível, como de milagre ou canto de pássaro do paraíso, mas Carlos Mena vai para lá do razoável, digo, daquilo que a razão explica. A entrada é discreta, presença suave. Sem histrionismo, mas cheio de expressão, o corpo ergue-se hiterático como coluna mas suave como junco em dia sem vento, quase sem brisa. Não ondula por fora mas por dentro dança, a voz. Quando sai, o som é como um deslizar no ar, que não é empurrado mas solto, algo que se deixa sair porque assim está escrito desde o início dos tempos. Imaginemos ar voando sobre nuvem de algodão doce, caramelo líquido deslizando em cascata de voz, umas vezes poderosa, outras um fio apenas, que no entanto ressoa em todos os cantos da sala mas sobretudo no interior dos corpos. Imaginemos alegria pura, como alguém que nunca tivesse nascido, como alguém que aqui se encontrasse sem ter nascido. É assim que se fica. Depois de um concerto com esta voz ficamos concertados como se nunca tivéssemos nascido nem fossemos morrer, apesar de tudo aqui estando. Dura algum tempo com a memória. Depois, com o ar cá fora, retomamos o exercício do viver sem a música, sem a voz, mas procurando noutros sons o milagre aprendido.
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