Risoleta Pinto Pedro
Não há crise!
Sei lá… já não sei nada… afinal o que é a crise? O que me parece, antes de mais, é que não existe uma crise… mas várias. À medida de cada um. Cada um vê a crise como pode, sente a crise como consegue, descreve a crise como sabe, supera a crise como se supera a si. Existe uma crise para cada cidadão; neste aspecto não se pode dizer que estejamos em crise. Mas verdadeira crise, aquela que põe um país realmente de tanga… não sei se podemos falar dela com conhecimento de causa. Vejamos:
Em Ferreira do Zêzere apanho uma camioneta que me há-de levar a Tomar, onde vou tomar o comboio que me trará a Santa Apolónia. Já é segunda vez que o faço, da primeira fui a única passageira, nunca tinha andado num táxi tão “enorme”; desta segunda vez fui uma de quatro, num dia que, esperava eu, por ser dia de mercado, era provável a camioneta vir cheia. Nada disso. Razão? Diz o meu pai, e penso estar certo: “Toda a gente tem carro”. Exacto, mesmo eu só sirvo para baralhar a estatística, porque apesar de ocasionalmente andar de transportes, também eu tenho carro.
Mais: estamos agora em Lisboa, numa aula de tai-chi, arte marcial de que gosto muito, numa Junta de Freguesia; o preço é suavíssimo, o professor é um luxo, vale ouro: excelente pedagogo, excelente praticante de tai-chi, generoso e doce como ser humano. Nós, os alunos, não chegamos a ser seis gatos pingados, na minha classe. Outras escolas, consideradas de luxo, mas certamente com muito menos qualidade na prática, na aprendizagem, na relação, cobram o triplo, talvez mais. E estão cheias. Não digo onde é a minha aula por puro egoísmo, por mim estou muito bem assim…
Mas cito mais factos: contaram-me no outro dia um caso absolutamente chocante. Que em alguns colégios caros de Lisboa, a partir de uma certa altura do mês, as crianças chegam à escola sem… pequeno-almoço! Vestidos como habitualmente com roupas de marca, transportados nos habituais carros de luxo… o dinheiro tem de chegar para o que se vê, o chamado status, e como o estômago não se vê… comem ao almoço, que já está pago com a mensalidade, e ainda vão com sorte, há países onde nem isso… mesmo neste país sabemos bem que há crianças que… enfim, ninguém consola o estômago com a fome dos outros, e estes meninos “ricos”, tal como os outros, têm direito a ser alimentados dignamente.
Qual a explicação? Há dinheiro para carros, há dinheiro para gasolina, há dinheiro para ginásios caros, telemóveis, playstations, … não há dinheiro para livros, não há dinheiro para os pequenos-almoços dos meninos que são transportados em carros de luxo a escolas de luxo, não há dinheiro para o verdadeiro conforto, não há dinheiro para os verdadeiros prazeres, há dinheiro para aquilo que a imagem, os media, a opinião pública, o senso comum, os concursos televisivos, etc, determinam que deve haver dinheiro.
Fico por aqui, porque esta crónica pode parecer um bocado reaccionária, mas os factos são factos… Parece-me, antes de mais, que realmente estamos em crise, que somos realmente pobres, mas porque a pobreza é um estado de espírito, e que com este estado de espírito não há dinheiro que chegue. Um país pobre é, realmente, aquele que não investe na cultura, na formação ética que a cultura dá. E na educação. Investir na educação não é apenas prover as escolas de computadores e internet. Não tenho nada contra as tecnologias, pelo contrário, mas assim, a crise torna-se uma pescadinha tecnológica de rabo na boca com tendência a crescer, porque sem cultura e sem ética gasta-se cada vez mais desastradamente o pouco dinheiro que se tem, fica-se cada vez mais pobre, e ao fim-de-semana vai-se com o cartão de crédito por conta do próximo mês passear para os hipermercados e centros comerciais. É a pobreza total, inapelável e triste. O que vale é que estamos quase a bater no fundo. Já não há muito mais a explorar no reino do disparate. Está quase na altura de emergirmos, já há quem comece a fazê-lo. Que tal apanhar umas boleias?
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