Risoleta Pinto Pedro
Passo à Sé iluminada…
… numa cidade deserta pelo fenómeno do futebol. No estádio, Benfica e Barcelona defrontam-se, nas casas, os lisboetas emocionam-se frente à televisão. No momento em que passo, lentamente, quando a Sé fica rigorosamente à minha esquerda, a janela aberta do meu carro em noite primaveril deixa-me ouvir, vinda do café do lado oposto, a voz alterada de emoção do relator do jogo, talvez da rádio, talvez da televisão. Não sei se foi golo, nem isso me preocupa, mas olho a Sé iluminada e uma profunda emoção me toma, não sei se reforçada pela voz da rádio, não sei se independentemente da voz da rádio, certo é que a solidez da Sé, a luminosidade colorida dos vitrais, das rosáceas e a sombra projectada sobre mim pela sua solidez antiga, me acolheram no seio de todos aqueles que por ali passaram ao longo dos séculos e a olharam e nela se acolheram… ou evitaram. Transportei parte da assistência do estádio para os bancos antigos da Sé e imaginei essa gente uns séculos recuados ouvindo emocionada, um pregador.
Permaneço dentro do pequeno Hyundai na noite lisboeta deserta, com a banda sonora de um relator de futebol de um lado e um pregador do outro, e já se confundem na minha cabeça os registos e os tons, e os devotos com os adeptos do estádio, e sinto crescer em mim a doçura que só mesmo a música de Bach ouvida na Sé alguma vez foi capaz de fazer nascer. E penso: um koan vivido é isto, um paradoxo é isto, e a iluminação, se ela existe, só pode ser isto: a total fusão dos adeptos do Benfica e do Barcelona em 2006, com os fiéis de uma qualquer Sé em qualquer século antes ou depois deste.
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