2006-03-15
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro
O Frei Luís de Sousa



Estamos numa aula a estudar o Frei Luís de Sousa. Ensino nocturno. É sexta-feira; estes alunos estão levantados há muitas horas, já têm em cima um dia de trabalho, uma semana de trabalho, algumas das mulheres, para além disso, trataram de uma infinidade de coisas antes de saírem de casa de manhã, algumas têm filhos, alguns estão nas aulas sem terem tido tempo para jantar. Ou dinheiro. Há também outros que, por ainda não terem encontrado trabalho, se levantaram pouco tempo antes de virem para a escola, e estão a contar o tempo que falta para sair, porque ainda vão até ao Bairro Alto. Ok, são todos alunos, vamos tentar fazer o melhor possível com o que temos. Ano 2006, estuda-se Frei Luís de Sousa, um drama romântico sobre um senhor de antiquíssimas barbas que volta do ultramar e encontra a mulher a viver com outro e com uma filha e ainda por cima ocuparam-lhe a casa e ficaram-lhe com o criado. No final disto tudo, a miúda morre, e os pais, depois de uns quantos gritos histéricos, entram para um convento. Uma vez consegui despertar a curiosidade de uma turma com uma sinopse assim. Corrijo: muito pior que isto; às vezes tem de ser. Quase pintei a minha cara, mas resultou. No fim, alguns sabiam declamar de cor (com o coração) e com a cabeça, excertos inteiros do drama.

Com estes alunos as coisas não se passam exactamente assim, são alunos de uma escola de ensino artístico, em princípio com alguma maturidade estética. Andamos a ler a peça na aula, às vezes a linguagem soa-lhes tão estranha que os risos se sobrepõem à leitura e o Frei Luís de Sousa transforma-se numa irreconhecível comédia. Mas percebo que estão a gostar. Reclamam a leitura integral do texto na aula.

Numa das aulas, comentava um deles que numa versão actual da peça a chegada de um romeiro não teria o mais pequeno impacto. O que teria mesmo efeito dramático seria a chegada de um fiscal do IRS, uma versão mais socrática, mais adaptada aos tempos. Às vezes assim, às vezes de outras formas, vamos percorrendo o texto. Também viram (com gosto) o filme de João Botelho. Tenho esperança (e sinais) que no final tenham ganho alguma sensibilidade à eficácia e expressividade da linguagem, ao ritmo da peça, à tragédia humana, à coragem, ao apelo amoroso, à culpa sem pecado, ao castigo sem culpa, à clausura por causa da liberdade, ao sacrifício para nada, à opção pela morte porque sim, à intemporalidade do drama, e a mais duas ou três coisas. Pelos mais paradoxais caminhos. Assim são os dos deuses, assim terão de ser os dos professores de português que acreditam que vale a pena, no século XXI, apostar em textos como o Frei Luís de Sousa. E outros. Antes que venha aí uma qualquer reforma e nos retire todos os clássicos dos programas. Já estamos escaldados. Mas não habituados. Nem queremos.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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