2006-02-15
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro
O imperativo da originalidade Canção Popular a Russa e o Fígaro
Amadeu Sousa Cardoso
c. 1916, óleo sobre tela
80 x 60 cm
Centro de Arte Moderna / Fund. Gulbenkian
Lisboa, Portugal

A propósito da originalidade, dois apontamentos recentes:

- Comentava-se há dias, na rádio, que no séc XX, Vivaldi começa a ser acusado de ter escrito sempre a mesma obra em diferentes versões. Para o gosto do século, o artista tinha de estar sempre a inovar, a ser diferente de si próprio, a inventar algo de absolutamente original e nunca visto, ou lido, ou ouvido. Esta crítica é feita, ainda actualmente, com frequência, aos autores. Sabemos que alguns se deitam à sombra da bananeira, que o mesmo é dizer-se, aprovada a receita, repetem-na até ao esgotamento do recurso e do rendimento. Há quem lhe chame preguiça, há quem lhe chame oportunismo ou desonestidade. Eu chamo-lhe medo. Mas não é disso que estamos a falar: É daquela coisa absolutamente ditatorial de um autor ter que estar sempre a surpreender, a ultrapassar-se, a inventar.

Também sobre isto alguém me dizia, recentemente, numa exposição que está no Museu do Chiado, que os artistas dos finais de século XIX princípios do século XX, mesmo quando foram claramente inovadores, e foram-no muitas vezes, não o foram porque tinham que ser, porque a crítica ou o público deles esperava que o fossem, mas por um imperativo de liberdade, do tipo: sou livre, logo contribuo com a minha liberdade criativa para o nascimento (ou crescimento) de uma escola. Sem que estas palavras ou ideia alguma vez lhes passassem pela cabeça.

É muito do século XX a preocupação com o novo. Há até quem tenha desistido de criar porque já tudo foi criado. É verdade que já tudo foi criado. E no entanto tudo está ainda por criar. O número e a variedade e a qualidade de combinações a partir da matéria-prima comum são infinitos. Cada ser humano é único, logo, se ele for verdadeiro, o que fizer será, certamente, único. O que não significa que não possa ter, que não tenha semelhanças com algo que está a fazer-se ou que já se fez. É como a língua. De uma base de dados limitada podem criar-se infinitas combinações. Sabe-se que é assim. É assim, seja com o que for em que criemos. Não há limite. O limite é só o do nosso medo: de não sermos originais, de termos de ser originais, ou de não podermos ser originais. Porque alguém, de fora, assim decreta. Bach, tendo que escrever pelo menos uma obra semanalmente, não consta que se tivesse debatido com esse tipo de problemas; não tinha tempo, tinha mais que fazer. E não consta, também, que alguma obra tenha sido copiada de outra. Era um criador. Um criador não se preocupa com o que dizem os teóricos ou o público. Ele apenas obedece ao seu próprio imperativo. Na arte, como na vida. É claro que as várias realizações têm marcas assumidas do compositor. Como não podia deixar de ser. Como no caso de Vivaldi. A única obra que eu já não suporto ouvir, de Vivaldi, é aquela que não se parece com nenhuma outra: As Quatro Estações. Pode ser por causa da utilização publicitária de que foi alvo, poderá ser, mas nem a originalidade a salva. E não tem culpa. Nem a obra, nem Vivaldi, nem eu.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/



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