Risoleta
Pinto Pedro
O imperativo da
originalidade |
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Canção
Popular a
Russa e
o
Fígaro
Amadeu Sousa Cardoso
c. 1916, óleo sobre tela
80 x 60 cm
Centro de Arte Moderna / Fund. Gulbenkian
Lisboa, Portugal
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A
propósito da originalidade, dois apontamentos recentes:
- Comentava-se há dias, na rádio, que no séc XX,
Vivaldi começa a ser acusado de ter escrito sempre a mesma obra
em diferentes versões. Para o gosto do século, o artista
tinha de estar sempre a inovar, a ser diferente de si próprio, a
inventar algo de absolutamente original e nunca visto, ou lido, ou
ouvido. Esta crítica é feita, ainda actualmente, com
frequência, aos autores. Sabemos que alguns se deitam à
sombra da bananeira, que o mesmo é dizer-se, aprovada a receita,
repetem-na até ao esgotamento do recurso e do rendimento.
Há quem lhe chame preguiça, há quem lhe chame
oportunismo ou desonestidade. Eu chamo-lhe medo. Mas não
é disso que estamos a falar: É daquela coisa
absolutamente ditatorial de um autor ter que estar sempre a
surpreender, a ultrapassar-se, a inventar.
Também sobre isto alguém me dizia, recentemente, numa
exposição que está no Museu do Chiado, que os
artistas dos finais de século XIX princípios do
século XX, mesmo quando foram claramente inovadores, e foram-no
muitas vezes, não o foram porque tinham que ser, porque a
crítica ou o público deles esperava que o fossem, mas por
um imperativo de liberdade, do tipo: sou livre, logo contribuo com a
minha liberdade criativa para o nascimento (ou crescimento) de uma
escola. Sem que estas palavras ou ideia alguma vez lhes passassem pela
cabeça.
É muito do século XX a preocupação com o
novo. Há até quem tenha desistido de criar porque
já tudo foi criado. É verdade que já tudo foi
criado. E no entanto tudo está ainda por criar. O número
e a variedade e a qualidade de combinações a partir da
matéria-prima comum são infinitos. Cada ser humano
é único, logo, se ele for verdadeiro, o que fizer
será, certamente, único. O que não significa que
não possa ter, que não tenha semelhanças com algo
que está a fazer-se ou que já se fez. É como a
língua. De uma base de dados limitada podem criar-se infinitas
combinações. Sabe-se que é assim. É assim,
seja com o que for em que criemos. Não há limite. O
limite é só o do nosso medo: de não sermos
originais, de termos de ser originais, ou de não podermos ser
originais. Porque alguém, de fora, assim decreta. Bach, tendo
que escrever pelo menos uma obra semanalmente, não consta que se
tivesse debatido com esse tipo de problemas; não tinha tempo,
tinha mais que fazer. E não consta, também, que alguma
obra tenha sido copiada de outra. Era um criador. Um criador não
se preocupa com o que dizem os teóricos ou o público. Ele
apenas obedece ao seu próprio imperativo. Na arte, como na vida.
É claro que as várias realizações têm
marcas assumidas do compositor. Como não podia deixar de ser.
Como no caso de Vivaldi. A única obra que eu já
não suporto ouvir, de Vivaldi, é aquela que não se
parece com nenhuma outra: As Quatro Estações. Pode ser
por causa da utilização publicitária de que foi
alvo, poderá ser, mas nem a originalidade a salva. E não
tem culpa. Nem a obra, nem Vivaldi, nem eu.
risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/
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