Risoleta
Pinto Pedro
Alfa Pendular
A caminho de um encontro de poesia em Coimbra. Na
estação, o relógio marca meia hora mais tarde. Bom
para quem seja atreito a ataques cardíacos. Já dentro do
comboio, um senhor e uma senhora disputam o mesmo lugar. Confirmam os
bilhetes e, realmente, foi-lhes atribuído o mesmo assento:
à janela. A senhora quase bate no homem; este exibe um sorriso
tímido e perplexo, quase culpado. Finalmente, ela, não
sei com que argumento, senta-se no lugar da janela. Por exclusão
de partes, ele, na coxia. Ainda tenta puxar conversa sobre o assunto,
de forma muito pacífica, ela fecha-se num mutismo agressivo e
irredutível. Entretanto, passa o revisor, cujos olhos
experientes imediatamente deslindam o mistério: na verdade, o
bilhete da senhora tem aquele número… para três dias mais
tarde! Ela não se desmancha, nem… se levanta. Continua
solidamente no lugar que, afinal abusivamente ocupara, sem um pedido,
sem um pedido de desculpa, sem nada, mas com infinita lata.
Eu, sentada logo atrás, na fila lateralmente oposta, vejo o
perfil do senhor que, como eu, continua sentado na coxia, à
minha esquerda, um pouco mais à frente. Olho assim, por
trás, de semi-perfil. Ele tem uma expressão levemente
tímida, levemente sorridente, levemente perplexa, levemente
inocente, levemente infantil, que me toca e me comove. Não
é uma vítima, é um manso. Nada de digno de nota
voltou a acontecer nesta viagem, mas a expressão do senhor
não se me apagará da memória, por ter qualquer
coisa que experimentei em pequena, em qualquer recreio de qualquer
escola. face a qualquer injustiça não reparada.
As crianças antigas acabam sempre por se encontrar em qualquer
sítio, em qualquer tempo. Estão espalhadas por todo o
lado. É um privilégio descortinar uma sob o sorriso
tímido e receoso de um senhor já muito crescido com uma
indisfarçável expressão de menino espreitando por
detrás do adulto.
risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/
|