2006-02-01
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro
      O Choque Tecnológico



Cena 1:

Lisboa, ano 2006 da era vulgar. Paragem de autocarro: uma qualquer, algures na cidade, que não interessa para o caso, mas que, por acaso, fica perto de minha casa. Espero um autocarro, faltam 14 minutos, segundo indica o mostrador eléctrico de contagem decrescente (digo eu, que já não tenho a certeza se é exactamente esta a lógica destes mostradores electrónicos). Mas, na minha leitura, faltam 14 minutos para o meu autocarro. O relógio electrónico vai-se detendo aproximadamente um a dois minutos em cada minuto. Quando chega aos 3 minutos fica lá, sem exagero, uns 5 minutos e depois continua a descer ao ritmo de 1 a 2 minutos por minuto. Já não me recordo como acaba esta história.

Cena 2:

Estou à espera de um autocarro. Faltam 29 minutos para o outro que ali passa. Quando faltam 26 minutos, o tal autocarro chega. A contagem continua como se não tivesse acontecido nada. Tento perceber a lógica. Subtraio 26 a 29 e dá-me três. Fico à espera que daí a 3 minutos passe outro autocarro. Não passa. Chega o meu. Não tive tempo para entrar na linha de tempo do outro autocarro.

Cena 3:

Espero o meu eléctrico. Faltam 17 minutos. O mostrador vai descendo até ao minuto 1. Não acontece nada. Ou melhor, ou pior, acontece. Depois de estar algum tempo no minuto 1 (já não faço ideia de quanto tempo, estou a ficar com um problema de orientação temporal), volta aos dezassete, isto é, voltam a faltar 17 minutos. O eléctrico não passou. Ou passou em forma invisível. Se se tratasse de um autocarro, eu ainda ponderava a possibilidade de ter dado uma coisinha qualquer ao motorista e ele ter decidido passar na rua ao lado, mas acontece que era o eléctrico, não há como não passar nos carris.

Os exemplos são muitos, poderiam ser mais. São um mistério, estes contadores de tempo nas paragens de autocarro. Quero acreditar que terão uma lógica a que eu não tenho acesso. Não percebo é por que é que eu não tenho acesso a essa lógica, já que, em princípio, eles se destinariam ao meu uso e de outros passageiros. Os outros utilizadores com quem tenho falado e sofrido estes choques também não percebem, e até se queixam que mais valia terem gasto o dinheiro noutra coisa qualquer mais útil, porque este sistema não só não serve como atrapalha, porque dá informações falsas, cria expectativas, engana, mais valia continuar no antigo sistema, em que a vinda do autocarro era sempre uma surpreendente alegria que poderia acontecer a qualquer hora, um minuto ou uma hora depois de se estar à espera, ou mesmo duas, mas sem anúncios enganosos. Se estivéssemos nos Estados Unidos, era caso para se processar a Carris e ter enormes hipóteses de vir a fazer fortuna com isto, mas como estamos cá, o mais que pode acontecer é um dia a Carris vir explicar a um telejornal que não tem culpa que os portugueses utilizadores dos transportes públicos não percebam nada de física quântica, de relatividade e de novas concepções do tempo. E é verdade, mas também é certo que os autocarros vão sempre tão cheios e os lugares são um bem tão raro, que, ao contrário dos outros europeus, não temos hipótese nenhuma de ler, nos autocarros, um manual de física quântica explicada às crianças, porque, com a condução de alguns motoristas, todos os nossos esforços têm que ser investidos em mantermo-nos de pé, muito bem agarrados a qualquer banco ou pessoa mais à mão. Proponho que se forme uma comissão para estudar este problema.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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