Risoleta
Pinto Pedro
O Choque Tecnológico
Cena 1:
Lisboa, ano 2006 da era vulgar. Paragem de autocarro: uma qualquer,
algures na cidade, que não interessa para o caso, mas que, por
acaso, fica perto de minha casa. Espero um autocarro, faltam 14
minutos, segundo indica o mostrador eléctrico de contagem
decrescente (digo eu, que já não tenho a certeza se
é exactamente esta a lógica destes mostradores
electrónicos). Mas, na minha leitura, faltam 14 minutos para o
meu autocarro. O relógio electrónico vai-se detendo
aproximadamente um a dois minutos em cada minuto. Quando chega aos 3
minutos fica lá, sem exagero, uns 5 minutos e depois continua a
descer ao ritmo de 1 a 2 minutos por minuto. Já não me
recordo como acaba esta história.
Cena 2:
Estou à espera de um autocarro. Faltam 29 minutos para o outro
que ali passa. Quando faltam 26 minutos, o tal autocarro chega. A
contagem continua como se não tivesse acontecido nada. Tento
perceber a lógica. Subtraio 26 a 29 e dá-me três.
Fico à espera que daí a 3 minutos passe outro autocarro.
Não passa. Chega o meu. Não tive tempo para entrar na
linha de tempo do outro autocarro.
Cena 3:
Espero o meu eléctrico. Faltam 17 minutos. O mostrador vai
descendo até ao minuto 1. Não acontece nada. Ou melhor,
ou pior, acontece. Depois de estar algum tempo no minuto 1 (já
não faço ideia de quanto tempo, estou a ficar com um
problema de orientação temporal), volta aos dezassete,
isto é, voltam a faltar 17 minutos. O eléctrico
não passou. Ou passou em forma invisível. Se se tratasse
de um autocarro, eu ainda ponderava a possibilidade de ter dado uma
coisinha qualquer ao motorista e ele ter decidido passar na rua ao
lado, mas acontece que era o eléctrico, não há
como não passar nos carris.
Os exemplos são muitos, poderiam ser mais. São um
mistério, estes contadores de tempo nas paragens de autocarro.
Quero acreditar que terão uma lógica a que eu não
tenho acesso. Não percebo é por que é que eu
não tenho acesso a essa lógica, já que, em
princípio, eles se destinariam ao meu uso e de outros
passageiros. Os outros utilizadores com quem tenho falado e sofrido
estes choques também não percebem, e até se
queixam que mais valia terem gasto o dinheiro noutra coisa qualquer
mais útil, porque este sistema não só não
serve como atrapalha, porque dá informações
falsas, cria expectativas, engana, mais valia continuar no antigo
sistema, em que a vinda do autocarro era sempre uma surpreendente
alegria que poderia acontecer a qualquer hora, um minuto ou uma hora
depois de se estar à espera, ou mesmo duas, mas sem
anúncios enganosos. Se estivéssemos nos Estados Unidos,
era caso para se processar a Carris e ter enormes hipóteses de
vir a fazer fortuna com isto, mas como estamos cá, o mais que
pode acontecer é um dia a Carris vir explicar a um telejornal
que não tem culpa que os portugueses utilizadores dos
transportes públicos não percebam nada de física
quântica, de relatividade e de novas concepções do
tempo. E é verdade, mas também é certo que os
autocarros vão sempre tão cheios e os lugares são
um bem tão raro, que, ao contrário dos outros europeus,
não temos hipótese nenhuma de ler, nos autocarros, um
manual de física quântica explicada às
crianças, porque, com a condução de alguns
motoristas, todos os nossos esforços têm que ser
investidos em mantermo-nos de pé, muito bem agarrados a qualquer
banco ou pessoa mais à mão. Proponho que se forme uma
comissão para estudar este problema.
risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/
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