2006-01-04
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro
     A EXTINÇÃO DAS ESPÉCIES

Os burros desceram ao castelo de S. Jorge, a partir das terras de Miranda. Não tiveram de conquistar propriamente o castelo; pelo contrário, nele ficaram confinados na parte mais interna do mesmo (onde, em tempos, encontrei um trovador a tocar) sem vista de rio, dentro de uma cerca, que poderia ter sido mais generosa em termos de espaço. Vital. Helena foi ver os burros. Eu, com ela.

À entrada, Helena, que não tem o BI actualizado, e, como tal, não apresenta residência em Lisboa, teve que pagar bilhete. Como os estrangeiros. - Percebi o sentimento de se querer cercar um castelo…

Comentou, depois. E conformou-se.

Passámos pelas fotografias dos burros, Helena fotografa as fotos, depois fomos vê-los em carne e osso e em pêlo, que, nos casos destes burros da raça asinina de Miranda, é muito significativo, pelo comprimento.

Os burros têm ar de conquistadores cansados, levemente tensos, alguns mostram sinais de stress, ou por terem tido que pagar bilhete para entrar (afinal, não são de Lisboa), ou pela viagem, o confinamento, os turistas, as máquinas fotográficas…Às tantas, Helena diz algo ao ouvido de um dos burros, não sei o quê, mas o animal fica mais tranquilo. Que lhe terá dito? Ter-lhe-á cantado uma música tradicional do planalto mirandês? Ter-lhe-á soprado o som do vento à orelha?

Vamos, agora, ver as fotos, na entrada principal do castelo. O fotógrafo é Oliviero Toscani. Um dos fotógrafos da Benetton. Os modelos são os burros e algumas das donas dos burros. Os burros são fotogénicos como ninguém. Como não têm nada a perder, nem imagem, nem pele, nem pêlo, nem liberdade, nem dinheiro, mostram-se totalmente como são. No Castelo de São Jorge, junto da estátua do conquistador, podem ser visitados os burros de Miranda, representantes firmes de uma raça periclitante, a raça asinina de Miranda. Vêm ao castelo pela lente de um fotógrafo, porque, não tendo nada a perder, têm, ainda, a esperança de sobrevivência. Num mundo em guerra aberta contra os seres frágeis, minoritários. Talvez o fotógrafo ajude a salvá-los. Um pouco mais abaixo, ali perto da fronteira de Badajoz, do lado de Espanha, acaba de ser descoberto um terreno para caça de animais em extinção, trazidos de outros sítios, para serem abatidos por caçadores com nostalgia de selva: leões, linces, lobos brancos, etc. Ninharias. Que vale isso ao pé do troféu sobre a lareira de um “herói”? Talvez os burros se safem, ali no castelo. Os castelos já tiveram uma função defensiva. Tragam também os leões, os lobos, os linces. Os lisboetas, com acesso livre, não lhes vão fazer mal, e os estrangeiros (à porta do Castelo de S. Jorge todos os que não vivem em Lisboa são estrangeiros, por isso pagam), os bárbaros, quer sejam da Renânia, quer de Linda-a-Velha, esses também podem ser revistados à entrada. Se trouxerem alguma navalha suíça ou uma bomba caseira, atira-se-lhes azeite a ferver. Enquanto tivermos oliveiras. Quando já não tivermos oliveiras também já não devemos ter burros, porque o melhor é vender a patente genética aos americanos, eles adoram antiguidades tanto quanto adoram novidades, e também já não teremos o castelo, porque foi vendido pedra a pedra, pelo governo, aos japoneses, para pagar o défice. Pronto. Do que é que eu estava a falar, afinal? Ah, dos burros! Ah, do castelo! Ah, das oliveiras! Ah, dos lobos! Ah, dos homens!

- Dos homens? Que é isso, mãe?

- Uma espécie em extinção. Mas conseguimos guardar uma cópia do ADN; está quase a ser reproduzida. Já existem umas reservas com uns quantos. Mas ainda estamos ao nível da experiência.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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