Risoleta
Pinto Pedro
A
EXTINÇÃO DAS ESPÉCIES
Os burros desceram ao castelo
de S. Jorge, a partir das terras de Miranda. Não tiveram de
conquistar propriamente o castelo; pelo contrário, nele ficaram
confinados na parte mais interna do mesmo (onde, em tempos, encontrei
um trovador a tocar) sem vista de rio, dentro de uma cerca, que poderia
ter sido mais generosa em termos de espaço. Vital. Helena foi
ver os burros. Eu, com ela.
À entrada, Helena, que não tem o BI actualizado, e, como
tal, não apresenta residência em Lisboa, teve que pagar
bilhete. Como os estrangeiros.
- Percebi o sentimento de se querer cercar um castelo…
Comentou, depois. E conformou-se.
Passámos pelas fotografias dos burros, Helena fotografa as
fotos, depois fomos vê-los em carne e osso e em pêlo, que,
nos casos destes burros da raça asinina de Miranda, é
muito significativo, pelo comprimento.
Os burros têm ar de conquistadores cansados, levemente tensos,
alguns mostram sinais de stress, ou por terem tido que pagar bilhete
para entrar (afinal, não são de Lisboa), ou pela viagem,
o confinamento, os turistas, as máquinas
fotográficas…Às tantas, Helena diz algo ao ouvido de um
dos burros, não sei o quê, mas o animal fica mais
tranquilo. Que lhe terá dito? Ter-lhe-á cantado uma
música tradicional do planalto mirandês? Ter-lhe-á
soprado o som do vento à orelha?
Vamos, agora, ver as fotos, na entrada principal do castelo. O
fotógrafo é Oliviero Toscani. Um dos fotógrafos da
Benetton. Os modelos são os burros e algumas das donas dos
burros. Os burros são fotogénicos como ninguém.
Como não têm nada a perder, nem imagem, nem pele, nem
pêlo, nem liberdade, nem dinheiro, mostram-se totalmente como
são. No Castelo de São Jorge, junto da estátua do
conquistador, podem ser visitados os burros de Miranda, representantes
firmes de uma raça periclitante, a raça asinina de
Miranda. Vêm ao castelo pela lente de um fotógrafo,
porque, não tendo nada a perder, têm, ainda, a
esperança de sobrevivência. Num mundo em guerra aberta
contra os seres frágeis, minoritários. Talvez o
fotógrafo ajude a salvá-los. Um pouco mais abaixo, ali
perto da fronteira de Badajoz, do lado de Espanha, acaba de ser
descoberto um terreno para caça de animais em
extinção, trazidos de outros sítios, para serem
abatidos por caçadores com nostalgia de selva: leões,
linces, lobos brancos, etc. Ninharias. Que vale isso ao pé do
troféu sobre a lareira de um “herói”? Talvez os burros se
safem, ali no castelo. Os castelos já tiveram uma
função defensiva. Tragam também os leões,
os lobos, os linces. Os lisboetas, com acesso livre, não lhes
vão fazer mal, e os estrangeiros (à porta do Castelo de
S. Jorge todos os que não vivem em Lisboa são
estrangeiros, por isso pagam), os bárbaros, quer sejam da
Renânia, quer de Linda-a-Velha, esses também podem ser
revistados à entrada. Se trouxerem alguma navalha
suíça ou uma bomba caseira, atira-se-lhes azeite a
ferver. Enquanto tivermos oliveiras. Quando já não
tivermos oliveiras também já não devemos ter
burros, porque o melhor é vender a patente genética aos
americanos, eles adoram antiguidades tanto quanto adoram novidades, e
também já não teremos o castelo, porque foi
vendido pedra a pedra, pelo governo, aos japoneses, para pagar o
défice. Pronto. Do que é que eu estava a falar, afinal?
Ah, dos burros! Ah, do castelo! Ah, das oliveiras! Ah, dos lobos! Ah,
dos homens!
- Dos homens? Que é isso, mãe?
- Uma espécie em extinção. Mas conseguimos guardar
uma cópia do ADN; está quase a ser reproduzida. Já
existem umas reservas com uns quantos. Mas ainda estamos ao
nível da experiência.
risoletapedro@netcabo.pt
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