Risoleta
Pinto Pedro
O homem que cantou
(conversas com Helena à
beira-rio)
Helena tem um amigo. Que acaba
de nascer. Nasce-se quando se nasce e morre-se quando se morre. Ou
quando algo ou alguém em nós, morre. Morre-se e nasce-se.
A este amigo de Helena morreu-lhe alguém nele, e por isso
nasceu. A este amigo de Helena morreu-lhe, recentemente, o pai.
Helena conta o que o amigo lhe contou. Não sei se acrescenta
algum ponto ao conto que conta:
- Quando o viu, cantou. O pai dele. Sentou-se na cama e cantou. Ergueu
a voz o mais que pôde em celebração da chegada do
filho. Ou seria da sua partida? Ou seria dos dois coincidentes
acontecimentos? Com dificuldade se ergueu, com dificuldade cantou. No
leito de viagem cantou, depois de se sentar com dificuldade.
Ao vê-lo chegar, com sua bela voz de barítono, embora
sonora sombra de si mesma, cantou. Assim celebrou a chegada do filho. A
última despedida, no cais da viagem.
O menino a que ele regressou nesse momento, ouviu o canto, como em
criança se debruçava à janela para ouvir a voz do
passarinho. Ou a voz do pai, que chegava de longe. Debruça-se
agora sobre o leito onde o pai canta como em cais de embarque, como em
janela de navio, como em Barca de Anjo, como em último voo de
passarinho.
O canto do pássaro ecoa ainda nos ouvidos do filho. É a
bela voz do pai. E o amor, que nunca deixará de ecoar nas
húmidas cavernas do coração dele. Agora, o amor do
pai é fluido e húmido e veste-se de sangue a correr pelas
artérias, circula pelos subterrâneos do corpo. Ao longe,
em cada célula, ouve-se uma voz. O canto do pássaro. O
passarinho ainda canta. O eco é cada vez mais débil, mas
o amor circula infinitamente em infinitos sons em vermelhos
líquidos de infinitos tons.
risoletapedro@netcabo.pt
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