2005-12-21
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro
DEMETER      

Tenho-a visto nos mais diversos sítios e tempos. Na minha infância: nos mercados, nas feiras, nas quintas, na rua… e aqui há uns anos, ia eu de comboio, a partir de Bucareste,a caminho da Moldávia e ali estava ela, numa estação; recentemente, vi-a logo de manhã, aqui na minha rua, mal abri o estore para o meu ritual diário de ver o estado do rio. É sempre a mesma e transporta-me sempre para um misterioso lugar que não sei localizar no espaço. É uma personagem com tanto de anacrónico quanto de eterno. De facto, retira-me do tempo, ou retira o tempo de dentro de mim. Batia à porta do prédio em frente. É sempre a mesma: botas pretas de borracha, sem salto, meias grossas de lã, normalmente castanhas ou cinzentas escuras, saia preta ou castanha às flores miudinhas, pull-over azul ou verde escuro sobre camisola cor de vinho. Casaco escuro, écharpe azul forte, de lã, sobre o todo. Guarda-chuva de homem, preto. Na cabeça, um lenço semi-caído, de cor parecida com o tom do cabelo. No braço, um saco verde seco, com umas alças que apenas permitem enfiar no braço: demasiado longas para pegar na mão, demasiado curtas para levar ao ombro. Não sei em que boutique se veste esta mulher, mas é um facto que há anos se veste assim. Não me parece que conheça nenhum perfume de marca, mas há um aroma a boiar em torno dela. Entre o sabão clarim e o sabão azul e branco, a lixívia, o fumo ancestral da lareira onde coze o caldo, e a alfazema. Tem olhos azuis, esta mulher. Estranhamente azuis. E um pequeno esgar trocista ao canto da boca, que a gravidade não consegue esconder. Esta mulher nunca foi elevada aos altares de deusa pela publicidade, mas um dia, na sala de caça da Regaleira, encontrei-a a sustentar… o mundo! O escultor omitiu-lhe o corpo, mas a expressão era a mesma. E eu pergunto-me: quem é esta eterna Demeter que encontro por todos os tempos, em todo o lado? Acreditando no reflexo e no espelho, que parte de mim lhe pertence? Ou estou eu nela?

Regresso à Regaleira onde um amigo fotografou o busto de duas mulheres sustentando uma enorme lareira sobre a qual está representada a caça, que, segundo ouvir dizer, é o arquétipo único comum a todos os arquétipos. Não sei se é assim, de qualquer modo, a monumentalidade da lareira bem poderia sustentar o mundo. Revejo um dos rostos: sereno, olhos fechados para ver melhor, expressão jovem e madura ao mesmo tempo, as mãos simultaneamente suaves e robustas seguram o lenço que começa a descobrir o cabelo, ou um saco. Ou as pontas do mundo.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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