古犬や先に立つなり墓参り 一茶 “O velho cão, Na visita ao cemitério, Segue à frente.” Issa Ainda os mortos, ainda os
vivos. Helena conta-me que foi ao
cemitério no dia de todos os mortos. Venceu o preconceito e foi no dia de todos
os mortais. Passou pelas vendedoras de flores, pelas televisões, pelos
vendedores de castanhas, por uma menina com rosto de anjo vendedora de velas.
Comprou-lhe uma vela, porque não se deve recusar um negócio com um anjo. Por
ali andou de vela na mão. Foi atrás de um grupo de pessoas. Entrou na …
secretaria! Até o cemitério tem uma burocracia. Kafka, Kafka, por onde andas?
Como os anjos de Wim Wenders, colou-se às pessoas e ouviu o que diziam e o que
pensavam. Uma jovem perguntava na secretaria pelo irmão. Não encontrara a
campa. Não sabia que os mortos se levantavam e desapareciam do único sítio de
onde era mais ou menos seguro não saírem. Por onde anda o meu irmão? - Não vieram levantá-lo ao
fim de cinco anos… - Não sabia que tinha que
levantar o meu irmão depois de morto… - Ao fim de cinco anos… (Dantes era todas as
manhãs… Realmente, cinco anos é um tempo razoável.) Pensou. Helena ouviu. - Então, se não o levantei,
quem o levantou? - Ninguém o levantou, já
lhe disse! A burocrata já estava a
perder a paciência. Ela percebeu que tinha que mudar de estilo. Havia ali uma
gramática que não dominava. - Desculpe, sou uma
ignorante. Não percebo nada de cemitérios. O tom mudou. Tornou-se
quase maternal. Foi buscar um livro. Enorme! Digno de qualquer ficção à Tim
Burton. O livro não cabia em cima do balcão. O livro dos mortos. Não o
tibetano, mas o livro dos mortos do cemitério de S. João. Percorreu páginas,
percorreu linhas, e encontrou o irmão da rapariga. - Ah!!! A exclamação foi da
rapariga. A explicação, da funcionária: - Secção sete. - Mas é tão grande, já lá
fui, não está no sítio onde estava! Acha que pode ter fugido? Espantosamente, a resposta
foi natural como se a pergunta o tivesse sido. - Não, foi afundado. - Afundado?! - Sim, empurraram-no para o
centro da terra. - A mulher da secretaria
está a tornar-se interessante. Segredou a Helena o anjo de
Wim Venders. - Empurrado?! Para o centro
da terra?! Afundado?! - Na secção sete. - São dezenas… - Pois são. O próximo. A burocrata foi buscar
outro livro. Helena e o anjo seguiram os passos da mulher. Até à secção sete.
Andaram, andaram. Até ao fundo do cemitério. Com rio à vista. Nem a rapariga,
nem Helena, nem o anjo, conseguiram ficar indiferentes à vista do rio. Apenas
os mortos. No rosto da rapariga desenhou-se um sorriso. Helena percebeu que o
anjo lhe soprara qualquer coisa. Helena sentiu um deslizar debaixo da terra. E
percebeu. Das profundezas, do ventre para onde fora empurrado, o irmão
deslizava subterraneamente até ao rio. Renascera. Precisava salvar-se da
obstinação dos vivos. Indiferente ao facto, ou aceitando-o, finalmente, a
rapariga escolheu uma campa afundada, uma qualquer, ou talvez não (Helena viu-a
hesitar entre duas e viu o anjo soprar-lhe novamente qualquer coisa) e ajoelhou
sobre o ventre da grande mãe. Aí depositou a flor que levava. Chorou um pouco,
aceitou a vela que Helena compara ao outro anjo da entrada, sorriu de leve,
enterrou a vela na terra, acendeu-a virou-se para o rio, gesto em que foi
imitada por Helena e o anjo, e subiu vagarosamente o cemitério, até à entrada.
Gesto em que foi imitada por Helena e o anjo. Foi agradecer à secretaria. A
funcionária fez quase um sorriso. - Encontrou o seu irmão? - Já está no rio. A mulher repôs a máscara
inexpressiva. Aquilo não estava previsto. Helena saiu atrás da
mulher, despediu-se do anjo, que tinha que ir para outro lado. A mulher passou
pelo vendedor de castanhas e hesitou. Não comprou castanhas. Desceu a avenida
em direcção ao rio. Pelo caminho dos vivos. risoletapedro@netcabo.pt http://risocordetejo.blogspot.com/ |
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