2005-12-07
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


     

 古犬や先に立つなり墓参り  一茶

furu-inu ya saki ni tatsu nari haka-mairi

 

“O velho cão,

Na visita ao cemitério,

Segue à frente.”

Issa

 

Ainda os mortos, ainda os vivos.

Helena conta-me que foi ao cemitério no dia de todos os mortos. Venceu o preconceito e foi no dia de todos os mortais. Passou pelas vendedoras de flores, pelas televisões, pelos vendedores de castanhas, por uma menina com rosto de anjo vendedora de velas. Comprou-lhe uma vela, porque não se deve recusar um negócio com um anjo. Por ali andou de vela na mão. Foi atrás de um grupo de pessoas. Entrou na … secretaria! Até o cemitério tem uma burocracia. Kafka, Kafka, por onde andas? Como os anjos de Wim Wenders, colou-se às pessoas e ouviu o que diziam e o que pensavam. Uma jovem perguntava na secretaria pelo irmão. Não encontrara a campa. Não sabia que os mortos se levantavam e desapareciam do único sítio de onde era mais ou menos seguro não saírem. Por onde anda o meu irmão?

- Não vieram levantá-lo ao fim de cinco anos…

- Não sabia que tinha que levantar o meu irmão depois de morto…

- Ao fim de cinco anos…

(Dantes era todas as manhãs… Realmente, cinco anos é um tempo razoável.)

Pensou. Helena ouviu.

- Então, se não o levantei, quem o levantou?

- Ninguém o levantou, já lhe disse!

A burocrata já estava a perder a paciência. Ela percebeu que tinha que mudar de estilo. Havia ali uma gramática que não dominava.

- Desculpe, sou uma ignorante. Não percebo nada de cemitérios.

O tom mudou. Tornou-se quase maternal. Foi buscar um livro. Enorme! Digno de qualquer ficção à Tim Burton. O livro não cabia em cima do balcão. O livro dos mortos. Não o tibetano, mas o livro dos mortos do cemitério de S. João. Percorreu páginas, percorreu linhas, e encontrou o irmão da rapariga.

- Ah!!!

A exclamação foi da rapariga. A explicação, da funcionária:

- Secção sete.

- Mas é tão grande, já lá fui, não está no sítio onde estava! Acha que pode ter fugido?

Espantosamente, a resposta foi natural como se a pergunta o tivesse sido.

- Não, foi afundado.

- Afundado?!

- Sim, empurraram-no para o centro da terra.

- A mulher da secretaria está a tornar-se interessante.

Segredou a Helena o anjo de Wim Venders.

- Empurrado?! Para o centro da terra?! Afundado?!

- Na secção sete.

- São dezenas…

- Pois são. O próximo.

A burocrata foi buscar outro livro. Helena e o anjo seguiram os passos da mulher. Até à secção sete. Andaram, andaram. Até ao fundo do cemitério. Com rio à vista. Nem a rapariga, nem Helena, nem o anjo, conseguiram ficar indiferentes à vista do rio. Apenas os mortos. No rosto da rapariga desenhou-se um sorriso. Helena percebeu que o anjo lhe soprara qualquer coisa. Helena sentiu um deslizar debaixo da terra. E percebeu. Das profundezas, do ventre para onde fora empurrado, o irmão deslizava subterraneamente até ao rio. Renascera. Precisava salvar-se da obstinação dos vivos. Indiferente ao facto, ou aceitando-o, finalmente, a rapariga escolheu uma campa afundada, uma qualquer, ou talvez não (Helena viu-a hesitar entre duas e viu o anjo soprar-lhe novamente qualquer coisa) e ajoelhou sobre o ventre da grande mãe. Aí depositou a flor que levava. Chorou um pouco, aceitou a vela que Helena compara ao outro anjo da entrada, sorriu de leve, enterrou a vela na terra, acendeu-a virou-se para o rio, gesto em que foi imitada por Helena e o anjo, e subiu vagarosamente o cemitério, até à entrada. Gesto em que foi imitada por Helena e o anjo. Foi agradecer à secretaria. A funcionária fez quase um sorriso.

- Encontrou o seu irmão?

- Já está no rio.

A mulher repôs a máscara inexpressiva. Aquilo não estava previsto.

Helena saiu atrás da mulher, despediu-se do anjo, que tinha que ir para outro lado. A mulher passou pelo vendedor de castanhas e hesitou. Não comprou castanhas. Desceu a avenida em direcção ao rio. Pelo caminho dos vivos.





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