2005-11-30
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


OS SAPATOS E O TEMPO      





(Diálogos com Helena à beira-rio)



Helena foi desafiada a ir falar, perante uma assembleia, sobre o tempo. Trocamos impressões.

- Não é sobre o tempo meteorológico, nem sobre o tempo musical ou o psicológico, no fundo, os únicos tempos que existem, mas sobre o outro tempo…

- Qual outro?

- O cronológico. O que não existe. Como posso eu falar sobre uma coisa que não existe?

Helena procura provar-me a não existência do tempo:

- Um dia tinha uma boneca no meu colo, no dia seguinte essa boneca já era um bebé. Minúsculo, mais pequeno que a boneca do dia anterior. Ao meu colo. O bebé mal se via, mal respirava. Pouco mais respirava do que uma boneca. Ardia em febre. No meio da não respiração, uns olhos brilhantes, intensos, perfuradores. Agora, o meu olhar vagueia entre o olhar que não entendo, e que me torna transparente, e uns minúsculos sapatinhos. Nunca me senti tão atravessada por um olhar de raio X a varrer-me por dentro. No momento seguinte o bebé, que sobreviveu à respiração, porque aprendeu a respirar, já é uma adolescente e os minúsculos sapatinhos transformaram-se nuns eternos e deselegantes ténis (quando era pequenina, pouco mais que uma boneca, mas já respirava e por isso já conseguia falar, ela chamava-lhes “pénis” [!!!], para delírio do irmão), no momento seguinte aparece-me, já não ao meu colo, porque já é muito maior que eu, uma jovem daquelas que a gente pensa que só aparecem nos filmes e nas revistas ou nos desfiles de moda mas que está ali em minha casa, empoleiradíssima em cima de uns impossíveis saltos dos mais improváveis sapatos (cor-de-rosa!) que já alguma vez imaginei a entrarem-me em casa. Aquele ser com a elegância e a inocência de uma barbie, mas a quem a natureza deu um suplemento de inteligência e simplicidade, prepara-se para ir a uma gala da Faculdade! Para o que uma mãe anda a criar uma filha!, começo por pensar. Uma gala e uns sapatos à Marylin Monroe! Eu sei que estava farta de a ver de ténis, mas também não era preciso exagerar! Não consigo tirar os olhos das torres sapatos cor-de-rosa e do meu preconceito. Os sapatos, aqueles sapatos, são o espelho do meu preconceito. Não há como um bebé ao nosso colo para nos desfazer de todo o lixo que transportamos desde a primeira respiração, desde a primeira aflição. Fico à janela a vê-la desequilibrar-se rua abaixo, nas irregulares pedras da calçada da Lisboa antiga, pronta a voar pela janela para a amparar. Agora sou eu que entro nos improváveis sapatos que me ficam enormes (os sapatos da minha mãe) e reaprendo a andar. Ao meu colo, uma boneca. Olha-me com olhos fascinados e graves. A boneca sou eu.

- Pronto, não digas mais, convenceste-me. O tempo não existe.

E lá vou a correr. Já estou atrasada para a aula.

risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/

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