2005-11-16
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


INDÍCIOS (de oiro)      




Os sonhos e o pide



O corrector rejeitou-me o título. Este corrector já nasceu depois do 25 de Abril de 74; para ele, “pide” (voltou a sublinhar-me a palavra, A VERMELHO!!!) é um conceito que não existe. Não existe o conceito, quanto mais o resto. Preocupante…

Isto, a propósito de dois livros de que já vou falar, porque foi um deles que me lançou uma interrogação sobre o outro. Isto é, lendo o livro de Ana Viana, A Casa Acordada, um dos pensamentos que me veio é que quando se fala de sonhos fala-se sobre eternidade; estes são textos sobre a eternidade, tanto quanto é possível encontrá-la, tanto quanto é possível poetizá-la. Uma forma é diluir as fronteiras entre o corpo e a alma, o que acontece no sonho, o que acontece na poesia, ainda que poesia em prosa.

Ler estes textos, para além da experiência estética, é prolongar os nossos próprios sonhos, até no reencontro com o lado criança que aqui surge com alguma frequência.

Depois li o livro de Albano Estrela, E se o Mal Existisse Mesmo?, uma narrativa inteligente e hábil sobre a vida de um agente da Pide e da sua correspondência com a esposa que, após se ter deixado enrolar na ficção que para si mesma ia construindo, apesar dos indícios, quando, finalmente, lhe cai a realidade em cima e já não é possível negar a evidência, se afasta. Para sempre, porque não é fácil um afastamento assim, e depois de se saborear o gosto da liberdade, responsabilidade e clareza de espírito, já não é possível voltar à prisão. Como o drogado que nunca mais vai poder experimentar o canto de sereia da droga. Segue-se então uma correspondência entre os esposos em que ela acusa e ele se defende. A defesa é feita com tal candura e sinceridade, insinuante, fina como uma aranha, que nos perguntamos: até que ponto um tal homem pode estar persuadido da sua rectidão? Até que ponto é possível que a ética fique submersa pela ignomínia a fim de lhe permitir uma máscara de moral? Pior: de amor. É claro que com estes ou outros contornos, níveis, planos e intensidades já muitos de nós viveram situações destas, em que sancionaram com o seu amor cego o abuso de que foram alvo por parte do outro, a que se ofereceram como alvo. Albano Estrela soube fazer isso muito bem e assim colocar-nos neste dilema: Pode o ultraje insinuar-se dentro de alguém com uma capa de dever? E pergunto-me ainda: como seriam os sonhos de um pide? Encontrar-se-ia algumas vezes nos sonhos, esses momentos de eternidade, com o menino esmagado?

Não tenho respostas, mas vale a pena ler estes livros, ambos da Editora “Indícios de Oiro”.



risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/

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