Risoleta Pinto Pedro
A FESTA E A MORTE
Acompanhada de quem queria conhecer mais do que a aparência da cidade, sem sair do espaço, mergulhei no tempo até à Lisboa do barroco. Quando os olhos se abrem noutro século, o espaço abre-se aos segredos que normalmente oculta. Começámos em São Roque onde, erguendo os olhos, vimos, num dos púlpitos, o Padre António Vieira. As cadeiras apinhavam-se de fiéis entre o amedrontado e o fascinado. No barroco tudo é teatral. Mesmo a angústia. Nas igrejas, o barroco assume uma forma opulenta, luxuosa e dramática para atrair as gentes, bem ao espírito da contra-reforma. Subindo os olhos mais um pouco, à volta do tecto, uma fileira de suportes em pedra cria um jogo de luz e sombra que mais parece um trompe l’oeil. No tecto, uma abóbada em trompe l’oeil cria a ilusão do real. No barroco nada é o que parece. É uma excelente exemplificação para quem pretenda conhecer a vida e o seu jogo de ilusões. Mesmo a morte, quando consegue aflorar, perfurando a maquilhagem, assume uma forma dramática e definitiva. Também a morte não é o que parece. Nem a festa é aquela, nem a morte é assim.
Mas desçamos novamente o olhar a acompanhar os nossos passos, até aos azulejos, eles mesmos uma demonstração da alucinação assumida nesta época (digo assumida porque continuamos a vivê-la… menos assumidamente, o que é ainda mais perigoso) e lá estão os azulejos criando a ilusão da ponta de diamante criando relevos que não têm.
Sobre a estrutura clássica, uma amplificação de dourados; nas colunas, anjos, motivos florais de toda a espécie. Azulejos em azuis e amarelos, mármores de cores diferentes, uma profusão de incrustações. Cada altar é um teatro. A capela do altar-mor apresenta, mesmo, uma boca de cena. Em todas, no meio da talha dourada, medalhões de pintura em madeira, um excesso que não faz pensar em abundância, mas em saturação. A esconder o real medo.
Que vamos encontrar nas pinturas do Museu de Arte Antiga: rostos austeros, cenas do quotidiano, meditações sobre a morte. Passámos pela baixela e seu espectáculo, terrinas de caça onde a ornamentação é tanta, que descobrir todos os pequenos motivos que a cobrem é um jogo de atenção que pode levar horas. Estamos agora numa das salas da pintura; detemo-nos num dos quadros e aí encontramos toda a explicação do espectáculo: uma caveira, uma vela semi-apagada. É esta a obsessão do homem do barroco. Que procura esconder sob a maquilhagem, os dourados, os jogos de ilusão, as cabeleiras. Junto do estojo de “higiene” pessoal, um utensílio precioso, a pequena caixinha de pó (também a de pó de arroz, mas não é essa a que me refiro) insecticida para espalhar sob as cabeleiras. Connosco, humanidade actual, gente civilizada que conhece a arte de dizimar os parasitas (os outros parasitas, ignorando que sobre a terra se comporta como parasita) a coisa entranhou-se mais, seria necessário levantar a pele e depois o osso e aí procurar os pensamentos. Com o pó, dispersá-los ao vento. E repensar, reaprender a pensar. Deixar o palco. Visitar os bastidores. É aí que todo o trabalho se faz. O palco é só um pormenor, uma consequência. Tanto que temos a agradecer porque tanto podemos aprender, com os séculos XVII e XVIII!
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