Risoleta Pinto Pedro
Teclado
Gnossienne nº 2, Satie, 1890
A dúvida começou por ser entre o sol e o mi, um pouco mais à frente entre o mi e o fá e depois entre os acordes sol dó mi bemol e lá ré fá. As dúvidas das mãos sobre o teclado são como o movimento do mar, fazem-se por fluxos e refluxos. Um dia, os dedos vão ter às teclas justas, e tanto e tão bem, que quase se deseja que Satie ali apareça, e no outro dia não acertam uma, como se nunca tivessem tocado tal peça. E nunca nos congratulámos tanto por ele estar morto e bem morto.
É então que me debruço sobre as indicações acerca da interpretação, que normalmente acompanham uma partitura.
Os andantino, andante, andante con moto, poço moto, adágio sostenuto, allegretto tranquillo, mezza voce, più espressivo, dolce, moderato, a tempo, allegro, ou rubato, que encontramos nos outros compositores, desaparecem na escrita de Satie e são substituídos por “avec étonnement” (com espanto), “ne sortez pas” (não saia), “dans une grande bonté” (com grande bondade), plus intimement” (mais intimamente), “avec une légère intimité” (levemente íntimo), sans orgueil” (sem orgulho). À partida isto parece totalmente desajustado e completamente inútil como orientação para o pianista, mas não é bem assim. Para além de a partitura não estar dividida em compassos, ao contrário do que é costume, o que, aparentemente, permite uma liberdade total em termos de tempo, isto tem grandes custos, porque se o “avec étonnement” não é difícil de interiorizar, porque ouvir ou tocar uma música de Satie nunca pode deixar de acontecer sem um espanto que se localiza algures entre a gravidade e o divertimento, o “ne sortez pas”, que parece à primeira vista totalmente absurdo, é que há de mais difícil, sobretudo nos dias de refluxo. Ele lá sabia. Ele sabia que não há coisa mais fácil para um pianista, do que levantar-se do piano. Muito mais fácil que o sentar-se. Sentar-se implica ver as horas para saber se não é demasiado cedo ou demasiado tarde para os vizinhos (e muitas vezes é), abrir o piano, retirar o pano de protecção do teclado, pedir ao gato para sair do banco, afastar o banco, abrir o caderno na partitura certa, afastar os gatos de cima do teclado, fechar-se para o mundo. Não é fácil. Levantar-se é facílimo. Depois de, por trezentas vezes, ter implicado com o mi em vez do sol, depois de várias vezes ter afastado os gatos de cima do teclado, depois de ter por várias vezes ter ido abrir a porta para os tipos da publicidade, atender o telefone, apagar o fogão porque a água já ferve, massajar os rins porque já doem, mais uma vez falhar, repetidamente, o tal acorde, se não fosse o “ne sortez pas”, não sei se teria passado do segundo sistema. O que me teria impedido de experimentar o sentimento de “grande bonté”, e teria perdido tanto! Porque a seguir, e só a seguir, me seria facultada a aprendizagem do desapego, a passagem de uma grande intimidade para uma intimidade leve. E sem orgulho. Uma lição de vida, cada partitura de Satie. Se conseguir tocar todas as Gymnopédies e as Gnossiennes sem me enganar nos acordes, sem me levantar do piano a meio da execução, atinjo a iluminação. Erik Satie era um iluminado. Mesmo.
(As romãs da fotografia são criação do ceramista Fernando Sarmento)
risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/
|