2005-10-19
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Um poeta que não faz lembrar nenhum outro      


"[...]

E assim, lendo-te, em verdade leio-me
A letra embora tua o sentido é meu,
Este poema meu em parte é teu, afundo-me no teu poema escrevendo-me.
[...]"

O autor escreve estes versos num poema intitulado "Lendo um poeta" em que fala com um "ruy" que adivinho Ruy Cinatti. Aquilo que ele afirma a propósito deste, também eu posso afirmá-lo lendo a sua poesia, a poesia de Domingos de Oliveira. É o que acontece quando um poeta fala em ressonância com a nossa alma.

Já conhecia alguns dos seus poemas. Neles, já vira o talento e a delicadeza subtil da voz poética. Chegaram-me entretanto às mãos três outros livros:

A MÃO QUE ESCREVE, alguns poemas
DEVASTAÇÕES, 34 sonetos
A ROSÁCEA

É poesia que flui como um rio, da primeira à última estrofe, do primeiro ao último verso. As estrofes vão desaguando na seguinte com suavidade sem corte, com suavidade líquida, mesmo quando se trata de poemas com crítica social, que nele nunca é panfletária. Esta poesia consegue ser lírica, mesmo quando de cariz social. Veja-se o poema:

DIFICULDADES

Trata-se sem dúvida de dificuldade minha
Sobre coisas que se passam na minha rua
Jovens, quase velhos, onde não sei quem fuma
As injecções que se dão de heroína.
Vejo perfeitamente da janela, cá de cima,
O movimento deles, e como se efectua
O mercado do pó que decerto cai da lua
Complacente no céu, indiferente, e benigna.
Podia lançar mão da Telecom e à polícia
Denunciar com precisão o que à crua
Luz sideral daqui se vê na penumbra,
Mas quem não sabe o que se passa? Fria
No vidro da janela a lua me espia.
Fico-me quieto na mansarda da escrita.

É um poeta português. Do norte, Escreve como quem nunca fez outra coisa. Publica como quem se retira, como quem pede desculpa, pequenas edições discretíssimas, sóbrias mas dignas, belas, por fora na sua simplicidade, e por dentro na sua elegância e conteúdo. E no entanto, apesar da modéstia das edições, apesar da sombra onde se abriga, a poesia reluz. E é ouro.

Este poema que acima mostrei é rigoroso, delicado, denunciador, poético, humano e político.

A simplicidade, em arte, como na vida, sempre foi uma coisa poderosa e comovente. Vejam o poema seguinte em que ele fala com um extremo pudor da morte de um amor, como quem fala da passagem do tempo:

Soube de ti na primavera.
O puríssimo arroio parecia eterno.
Mas já nas dunas do verão senti
Demasiado grande a espera.
Nas cidades de Outono procurei
Incessante, de rua em rua, de rosto em rosto.
Só à entrada do Inverno, caía a noite,
Na neve vi que passaste.

Assim integra na naturalidade do ciclo das estações e das coisas que passam, aquilo que, como tudo, passa.

Há poetas que de vez em quando me fazem lembrar outros sem que façam pastiche, sendo excelentes, e isso não tem mal nenhum. Mas este poeta, não só é excelente, como não me faz lembrar nenhum outro, embora isto possa parecer contraditório em relação à forma como iniciei esta crónica. Deixo a contradição para que cada um a resolva.


risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/

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