Risoleta Pinto Pedro
AS PERGUNTAS SÃO COMO AS CEREJAS
ou: Pequeno ensaio sobre a esperança
E se em vez de uma pessoa, você fosse. um país? Ou. um sentimento? Ou. um
objecto? Ou. uma herança? Como seria você se não fosse o que é? Se fosse
diferente? Se nem sequer fosse um ser humano? Poderia, ou não, ter
acontecido?
Você acha que é mesmo o que é?
Você acha que já estava predestinado a ser o que é? Você acha que só poderia
ser você? Você acha que nunca poderia ter sido diferente?
Então e se, sendo uma pessoa, você fosse um assaltante? Um fanático? E se
tivesse sido violado em pequenino? E se tivesse nascido numa prisão por a
sua mãe ser tóxico-dependente? Não poderia ter acontecido? É seu, o direito
de nascença? De que grau de merecimento o recebeu? Que fez, para nascer onde
e do modo como nasceu?
E se você fosse um poema? Imagine um corpo feito de palavras e ar
continuamente a ser soprado pelas bocas, dissolvendo-se na atmosfera e
continuamente desaparecendo.
Imagine-se um poema fechado dentro de um livro de uma biblioteca abandonada,
anos e anos à espera que alguém apareça e, de todos os livros da imensa
biblioteca escolha aquele em que você está e de todas as páginas (o livro é
grande) escolha o poema que você é e o leia e o ame e o leve e o liberte
para o ar. E se você for um poema e isso nunca acontecer?
E se você fosse um país? Como se sentirá um país como o Afeganistão, corpo
de medo, confusão e sangue? Como se sentirá um país como Angola, corpo
cobiçado e doente?
E se você fosse uma célula enlouquecida de um corpo doente? Gostaria de ser
odiada? Não ficaria ainda mais louca? Se se sentisse amada e aceite, não
adormeceria num doce sonho de saúde?
Imagine-se a viver permanentemente irritado. Ou permanentemente com raiva.
Ou permanentemente com medo. Esse não é você, mas há gente assim. Imagine-se
a viver permanentemente com amor. Consegue imaginar-se assim?
Se você fosse uma gata amorosa e maternal e um dia, subitamente olhasse os
seus filhos e visse apenas gatos adultos, assustadores e passasse a ter um
autêntico pavor deles a ponto de ter que ou assustá-los tanto para disfarçar
o medo, ou partir?
E se você fosse uma nota musical (Um dó? Um lá?) a sair do piano juntamente
com as outras e logo depois ficasse separada, suspensa, sem sentido?
Se você tivesse sido maltratado em pequeno e tivesse tanto medo do sexo que
apenas conseguisse imaginar, como parceiro, uma criança? Como seria
sentir-se odiado por isso?
E se você tivesse nascido no meio do ódio?
E se você tivesse de andar à procura de alimento nos caixotes de lixo? Ou
isso não é para si? De qualquer modo, imagine o cheiro, imagine as toxinas,
para variar, ou não, deixe-se penetrar pela repugnância e pelo enjoo.
Agora imagine o mundo cheio de pessoas normais como você, quero dizer, que
foram bem recebidas ao nascer, não foram violadas, não passaram fome, sempre
se sentiram amadas, nunca se sentiram a mais, cresceram harmoniosamente,
estudaram, tiveram uma carreira, casaram, tiveram filhos saudáveis, são
honrados, admirados. De quem é o mérito? E a sorte? Ou o azar?
Acredita que existe alguém assim? Acredita que existe alguém verdadeiramente
assim, que não o seja apenas na aparência? Acredita que existe alguém
totalmente, automaticamente assim?
Acha possível viver sem toneladas de preconceitos a pesar sobre o pescoço, a
deformar a coluna? De onde virão alguns torcicolos, algumas dores nas
costas, muitas dores de cabeça? Acaso, fatalidade ou destino, castigo de
Deus, ou. presente de si mesmo?
Você acha que estas perguntas não têm importância? Esqueça.
Agora escute:
Você é mesmo um poema. Seja lá quem for, você é um belo poema épico-lírico.
Dentro de si está Angola e o Afeganistão e todos os violadores, e as pessoas
ao lixo, e as células doentes e as saudáveis e as pessoas com ódio e as
felizes. Você está numa imensa biblioteca frequentadíssima. Não há hipótese
nenhuma de não ter leitores. Há mais leitores disponíveis do que aqueles que
algum dia poderiam lê-lo. Comece a recitar o seu poema mas faça-o já.
Deleite-se com ele. Sinta as metáforas, embale-se na cadência, dance com a
música. A sua música. Faça uma ou outra correcção à métrica, veja como
aquela imagem pede mesmo uma sinestesia, melhore esse verso. Acrescente uma
estrofe. O poema é você. Repare como é belo. Mesmo coxo, mesmo magro, mesmo
gordo, mesmo de cabelos brancos, mesmo tímido, mesmo com medo. Um poema pode
sempre melhorar-se. Nunca deixe de o fazer. E de o dizer. E de o ler. Até ao
último momento, você é os leitores todos. E o poema.
Experimente, e um dia vai surpreender-se. Onde havia medo, células doentes,
lixo e raiva, você vai encontrar um poema irradiando. luz. Não há
possibilidade de não acontecer. Um poema de que não se desiste transforma-se
sempre, mas sempre, em. música! Shut. não a ouve já?
risoletapedro@netcabo.pt
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