2005-08-10
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Rua de S. Marçal, nº 104

Uma das casas onde viveu Fernando Pessoa. Veio para aí viver após a morte do pai. Directamente da casa do Largo de S. Carlos. Na placa, à porta, inaugurada no dia 26 do mês de Julho, um texto de Matilde Rosa Araújo e uma quadra de Pessoa aí criada. Em 1905. Tinha sete anos.

Na inauguração, para além de representantes da Junta das Mercês e das Associações Fernando Pessoa e Agostinho da Silva (que viveu ali na freguesia), Manuela Nogueira, Matilde Rosa Araújo e Lagoa Henriques. Olhando-os aos três, tão bonitos, tão vivos, tão. juvenis, posso dizê-lo, porque apaixonados, entusiasmados, cheios de luz, pensei:

"Há pessoas que não envelhecem, apenas crescem. Temos aqui três exemplos extraordinários. Radiantes de beleza, serenidade, entusiasmo. Quero crescer assim, até perto dos cem anos."

Tomei assim uma decisão importante para o meu futuro. Por exemplo, contágio e evidência.

Matilde Rosa contou um episódio de quando viu uma menina ao colo da escultura de Pessoa que está no Chiado, acariciando o rosto do poeta como se acariciasse um rosto vivo.

Imaginei-a no lugar da menina, acariciando Pessoa. Podia, perfeitamente, ser ela.

Manuela Nogueira evocou o tio e emocionou-se perante a situação de regressar a um espaço onde conseguia sentir ainda a presença dele, menino. E eu olhei-a e vi o olhar vivo e brilhante de uma menina, a menina dos chocolates ("come chocolates, pequena") que ele viu nela. A menina saboreando a vida como um chocolate, que ela continua a ser, falando com as pessoas, escrevendo livros, fazendo coisas, vibrando com o diapasão da vida. Lagoa Henriques entusiasmou-se, como de costume, e disse poemas e poemas de Pessoa de cor, isto é, "par coeur", directamente saídos do coração. Contou que, inicialmente, a escultura foi concebida com a mão pousada sobre o joelho; depois, um dia, por inspiração, decidiu colocá-la sobre a mesa; " partiu-lhe o braço" ainda em barro (seria depois gesso e depois bronze) e refez o trabalho.

Manuela Nogueira desmistificou uma história posta a correr por um jornalista sobre o alegado estado de incorrupção do corpo de Pessoa, ao ser trasladado para os Jerónimos, e testemunhou que a urna nem foi aberta. E assim desfez o mito de quem sonhava canonizá-lo. Pessoa não precisa disso. Um poeta como ele vale tanto ou mais do que um santo. Ser poeta como ele foi, é uma espécie de santidade. Não canónica, não precisa de folclore post-mortem. Esta cerimónia poderia ter sido isso (estas cerimónias correm sempre um bocado esse risco) se não fosse a presença dos três deslumbrantes meninos. Luminosos de fazer "inveja" a qualquer dos presentes. Um dia, espero que daqui a muitos anos ainda, e certamente assim será, estes seres fenecerão como uma flor ou apagar-se-ão como o dedo faz ao traço de giz. Deles ficará o indelével perfume. Ou o sorriso. Nos livros, nas esculturas, na nossa memória.

À saída, chovia. "Chuva Oblíqua", disse Matilde Rosa Araújo. São assim os espíritos vivos.




risoletapedro@netcabo.pt
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