Risoleta Pinto Pedro
O olhar da infância
"Sentia-se invisível em toda a parte. As pessoas grandes passavam, trabalhavam, falavam sem reparar nela.
Na maior parte das vezes não se davam, sequer, conta da sua presença. O que até lhe facilitava a vida, de certa forma."
O Cão na Casa Verde, Isabel Millet
Ed Caixotim, Porto, 2004
"[...] As mulheres surgem como vítimas da violência masculina, da violência familiar, da violência social, as crianças vítimas da violência dos adultos e da subtil violência dos idosos, os homens "desvirilizados", vítimas da suave violência das mulheres, os velhos vítimas da violência da sua própria natureza e dos adultos que já foram: umas vezes manipulados como crianças ou marionetas, outras objectos-alvo de cuidados básicos de limpeza. Na sua maioria os corpos são sólidos, carnais, vítimas da violência de uns seres animalescos ou mesmo de animais de pesadelo, muito frequentemente erotizados. Num mundo sem misericórdia e sem obediência. Mas com decadência e com submissão.[...]"
Escrevi isto, um dia, a propósito da última exposição de Paula Rego; mas o excerto poderia referir-se ao mundo encontrado no livro de Isabel Millet, universo visto pelos olhos de uma criança.
Sempre me impressionou o olhar da maioria das crianças: grave, perscrutador, intenso, profundo, inteligente. Abandonada foi já a teoria da criança como uma página em branco, a preencher. Agora sabe-se que não é assim, pelo contrário...
Olhava, nos olhos, a minha filha, ainda tão bebé, quase recém-nascida, e sentia-me atravessada por um olhar de raio x. Revia-me nela. Eu sabia que ela sabia, eu sabia o que ela sabia, eu sabia que ela sabia tanto como eu. Talvez estivesse até a tentar dizer-me aquilo que eu própria não sabia. É claro que, entretanto, esqueceu, como a maioria dos adultos esquece.
Vem isto a propósito do livro de Isabel Millet acima citado, sobre o qual falarei hoje na Fnac Chiado. E é disso mesmo que trata esse livro: do ignorado olhar das crianças sobre o mundo mais ou menos estranho e chocante, doente e demente, dos adultos, e da ignorância destes acerca da observação de que são alvo, como pássaros estúpidos, ou como vermes, ou como pedras (e mesmo assim, não sei se as pedras...).
Nunca me esqueci do meu olhar de criança e de como observei sistematicamente o mundo dos adultos; não foi, de perto nem de longe, o universo de horror de Paula Rego ou da história da casa verde, mas mesmo assim tanto material recolhi, tanto, tanto, que ainda hoje ando às voltas com tudo o que até hoje fui armazenando para construir uma teoria. O problema em ter-me atrasado assim é que, entretanto, entrei no mundo observado, passei a ter o duplo estatuto de observadora e observada, o que dificulta as coisas. Mas começo agora a arrumar os dados e a organizar a história e a libertar-me dela e daquela que eu pensava ser eu. Começo a descobrir alguém que, à força de se esconder, para observar, passou a ser também uma desconhecida para si própria. Como os adultos.
Isabel Millet contou uma história em que a protagonista é uma espécie de Alice no país dos horrores, ou no país das pinturas de Paula Rego. É de Paula Rego a capa do livro. Não poderia ter outra.
A história, mas este já é um pormenor menos relevante, passa-se na casa de Guilhermina Suggia, que a autora (casa e artista) conheceu em pequena. É a casa verde. Era verde, a casa; entretanto, mudaram-lhe a cor. Mas é só o cenário. O espaço psicológico é o das crianças de todo o mundo e de sempre, obrigadas a assistir à história de horrores que é, por vezes, o mundo dos adultos. Quando são ignoradas, é uma sorte. Pior é quando elas próprias são também escolhidas para protagonistas. Nesta história, a menina conseguiu salvar-se, tornando-se invisível. Conseguiu salvar-se do pior, mas não da fatalidade da observação. Porque foi essa que a salvou.
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