2005-06-15
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


Cantar de emigração

Rosalía de Castro
Traducão de José Niza

Este parte, aquele parte
e todos, todos se vão.
Galiza, ficas sem homens
que possam cortar teu pão

Tens em troca órfãos e órfãs
e campos de solidão
e mães que não têm filhos
filhos que não têm pais.

Corações que tens e sofrem
longas horas mortais
viúvas de vivos-mortos
que ninguém consolará


O nosso amargo cancioneiro, Livraria Paisagem, 1973 - Porto, Portugal

Que têm em comum...

... Einstein, Carl Gustav Yung, Fernando Pessoa, João dos Santos, Agostinho da Silva, José Afonso, Fernando Vale, Maria de Lurdes Pintassilgo, Sophia de Mello Breyner, Vasco Gonçalves, Álvaro Cunhal e Eugénio de Andrade? Todos partiram já. Mas sobretudo, todos, de uma forma ou de outra, uns mais que outros, pela sua forma de estar, pelo seu pensamento, pela sua acção ou pela sua arte, me deixam um vazio. Para eu compreender e preencher, claro. Mesmo os que morreram antes de eu nascer. Quero-os aqui e pronto!

Alguns não têm, aparentemente, nada a ver com os outros, e no entanto, todos, de alguma forma, me foram exemplos e me deixaram uma assinatura no coração. Não quero com isto dizer que nunca me zanguei com eles, ou com algumas das suas acções, ou que sempre concordei plenamente com eles. Posso até dizer que têm também isso em comum: momentos houve em que, por uma razão ou outra, uns já mortos, outros ainda vivos, me irritaram profundamente. Não vou falar dos defeitos. O Mário Soares pode dizer mal do Cunhal, o Manuel Maria Carrilho do Agostinho da Silva, e por aí fora, haverá sempre alguém disponível para dizer mal, sem precisar de mentir, de cada um destes. Não eram perfeitos, pois não. E não passam a sê-lo, mas... que falta fazem...

Assim misturados, formam uma salada talvez estranha, ou talvez não, mas riquíssima, feita de: psicologia das profundezas, genial intuição científica, Quinto Império, liberdade, consciência total, estudo e respeito pela psicologia infantil, direitos das mulheres, religiosidade, revolução, fraternidade, justiça social, coerência e convicções e profunda sensibilidade artística e poética. Não segui a ordem dos nomes, porque algumas destas qualidades poderiam ser distribuídas por vários; outras, por todos.

Só o facto de saber que Yung, esse iluminado da mente, viveu ainda alguns mesmos anos comigo nesta Terra (uns quatro ou seis), que comigo pousou sobre o planeta e respirou o mesmo ar, ainda que eu não o soubesse então, é ideia muito consoladora. E pensar em Cunhal, esse símbolo, como outros, sobrevivendo a anos de isolamento numa prisão sem se deixar abater, ou Pessoa, tão só, no seu génio, no meio de uma sociedade aos seus olhos ainda quase pré-histórica, e Agostinho, tão jovem, tão menino e tão sábio e tão vivo com oitenta anos, e assim continuaria a falar de cada um dos outros...

É claro que esta lista poderia ser mais longa, poderia recuar mais e ir ter a Séneca, a Jesus, mas nunca mais acabaria, e são estes que, em termos do meu percurso, me têm, de alguma forma, impressionado, como a luz impressiona a película.

Outros ainda poderia referir, que igualmente assinaram com um sangue espesso mas fluido, o meu coração, mas, não sendo menos importantes, pelo contrário, não são conhecidos de vós.

Por isso, falo-vos destes, assim falando de todos.

No sábado, por um telefonema recebido por alguém, muito próximo de Vasco Gonçalves, soubemos que partira. Na segunda, duas mensagens no telemóvel informam-me sobre Cunhal e Eugénio. Não anda demasiada gente a morrer? Muito mais gente terá partido ao mesmo tempo, não os conhecia, mas estes custam. Não por eles. Acredito que estivessem preparados. Seguiram o seu caminho. Por nós, que ficamos mais sós.

Que relação tem isto tudo com o "Cantar de Emigração" de Rosalia, que serviu de epígrafe? É que somos todos emigrantes aqui. Um dia, todos os emigrantes partem. Às vezes parece que se combinaram. Como agora. Vão em grupos, com diferença de horas, de dias, para disfarçar. Acho que fazem de propósito. Estão fartos de nós, de assistir, demasiadas vezes, à mesma entediante peça.

A mensagem que nos deixam é a sua vida. E um silêncio onde se lê assim: "Agora, desembrulhem-se, já tenho a minha dose". Têm razão e estão no seu direito.

Desembrulhemo-nos nós. E procuremos ser atentos, corajosos, criativos, verdadeiros, livres. Não fazemos mais que a nossa obrigação. Para connosco mesmos.


risoletapedro@netcabo.pt
http://risocordetejo.blogspot.com/


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