2005-05-11
QUARTA-CRESCENTE
Risoleta Pinto Pedro


"AINDA A UTOPIA"



(Algumas reflexões decorrentes do tema "Pessoa e a Utopia")

Existe uma contradição no conceito de utopia, porque, se por um lado ela é um não lugar, por outro lado ela implica um desejo, o de ver esse não lugar realizado, sonhando-o, descrevendo-o, procurando, até, concretizá-lo em termos físicos. A utopia pode ser de tipo anarquista, libertária, com um teor mais abstracto, ético, ao nível dos valores, ou com preocupações muito centradas na justiça social, no económico, como a utopia marxista.
Há utopias que põem muito a tónica na felicidade individual, mantendo implícita a felicidade colectiva, mas centrando-se naquela, e outras mais preocupadas com a justiça social. Algumas estão ligadas a uma dada religião, outras recusam-na totalmente, outras ainda, são totalmente neutras desse ponto de vista.
Têm sido entendidas umas vezes como fé, outras como insensatez. Associadas à ideia de perfeição, normalmente projectadas no futuro, mas outras também no passado. A ideia do Paraíso como um Jardim de Felicidade total é uma ideia utópica projectada no passado. Algumas utopias, como a de Pessoa, pretendem conciliar estes dois extremos, encurvando o tempo e indo buscar, à recordação do passado, a esperança para o futuro.
Há utopias centradas no agora; é o caso da utopia de Agostinho da Silva, uma utopia muito operativa e tolerante para com a imperfeição, utopia como sendo o melhor que se consegue fazer. Agora. E o futuro será isso. Não é uma utopia saudosista, nem ora melancólica ora épica como a de Pessoa, que na melancolia e na épica funde os dois tempos porque tanto projecta a sua melancolia no passado como no futuro, tal como o fervor épico, mas a utopia de Agostinho, embora situada numa tradição, assume uma forma original muito realista, vendo sinais, no presente, de começos de concretização da utopia sonhada, e arregaçando as mangas para acrescentar sinais.
Há utopias autoritárias, ancoradas no dever, outras, libertárias, centradas no prazer. Ambas têm provocado junto de certas pessoas, o descrédito das utopias, junto dos intelectuais, no caso das primeiras, junto dos legisladores, no caso das segundas. Mas ninguém tem escapado à tentação da utopia, mesmo os que não lhe chamam assim: Artistas, filósofos, políticos, economistas, cientistas. Ela está também presente em alguma arquitectura, na cibercultura, nos estudos de genética, na engenharia molecular, na ecologia, na justiça. No fundo, norteia praticamente toda a nossa vida. Justamente porque temos que lidar, no dia-a-dia, com a evidência da ausência dela.
É um facto que a utopia tem feito avançar em direcção ao progresso, mas também os excessos deste têm feito recuar em direcção às cavernas.
Por detrás da utopia está um profundo descontentamento com o estado do mundo; o movimento hippy, as comunidades religiosas que se recusam a aceitar o progresso e o conforto vivendo como há uns séculos atrás, as seitas religiosas que funcionam de uma forma fechada e segundo um esquema predefinido, a comunidade que se reuniu em torno de Jesus, e tantas outras, têm implícita, ainda que não o reconheçam, uma ideia de utopia. E é o que nos salva. E é o que nos mata. É perigosa, desejável e incontornável.
Talvez a arte seja a única utopia completamente não perigosa e realizadora. Por isso, Pessoa escolheu a poesia como o caminho para essa terra sem lugar. Porque amplia, abre, e não escraviza. Não obriga, não julga, não exclui. E atenção, que falo de arte, de criação, e não dos mecanismos perversos que a ela se colam, porque a perversidade está atenta e não desperdiça recursos. Não falo de edições, nem de galerias, nem de negócios. Falo de criação e de comunicação, à margem de qualquer tipo de interesses ou ideologias, em que o móbil é ao mesmo tempo o enraizamento e a elevação, através das trocas de sentimentos e ideias.


risoletapedro@netcabo.pt
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