3ª SESSÃO DE APRESENTAÇÃO DO LIVRO Venite in silentio coincidente com a estreia do espectáculo de mesmo nome
Serra d'Ossa, Hotel Convento de São Paulo, 1 de Outubro de 2004
Como a um filho, não conheço este livro. Não é por se transportar a luz que se passa a conhecê-la. Talvez seja, de todos os meus livros, o que menos conheço. Começo agora a conseguir lê-lo. Distanciadamente. A única maneira de conhecer, depois de ter estado em osmose com o objecto do conhecimento.
Cumpre-se hoje o ciclo de apresentação deste livro, que teve o seu primeiro lançamento em Lisboa na livraria Ler Devagar, depois em Évora na Som das Letras e hoje no Hotel Convento de S. Paulo. Duas livrarias e um convento. Na realidade, tendo em consideração que ambas as livrarias são especiais, por serem espaços não convencionais, não exclusivamente centrados na venda de livros, mas centrados em torno da ideia de reunião, que é o significado da palavra convento, afinal, este livro foi apresentado em três conventos.
Curiosamente, é quando termina o ciclo do livro que tem início o do espectáculo. Diria mais: entrelaçam-se, ou abraçam-se, em amalgama ou em anel ou em laço, espectáculo e livro, porque é após o primeiro espectáculo que se dá por concluída a apresentação do livro. Nesta confluência se juntam, sendo que nem o livro tem o seu final aqui, nem o espectáculo verdadeiramente hoje se inicia. Ele já está dentro de nós desde o início da gestação do projecto, e está no livro. Se o lerem, podem comprovar o que estou a dizer.
Assim sendo, livro e espectáculo estão inseridos num continuum a várias dimensões, pertencem a um fluxo a que cada um dá um nome, mas ao qual, talvez eternidade seja o mais adequado, embora não saibamos do que falamos quando falamos de eternidade porque os nossos corpos, apesar de maravilhosos, são demasiado limitados para suportarem tal esmagador conceito. Apesar de tudo, paradoxalmente, suportamos e compreendemos melhor a morte.
Mas Einstein, a quem se presta homenagem no início deste livro (ou no fim?) disse uma vez: " A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão, por muito persistente que seja." Repito: "por muito persistente que seja". As ilusões são persistentes. E nem por isso deixam de ser ilusões. Persistentes, mas não consistentes. Portanto, segundo ele, o tempo é apenas o disfarce de uma outra coisa. Não se comporta como um estafeta normal, pode correr do futuro para o passado e em todas as direcções simultaneamente. Isto é demasiado perturbador. Não fomos educados para isto. Fomos preparados para estar numa fila que se desloca apenas numa direcção e num sentido, à espera da morte. Sombras à espera de uma ilusão e de uma contradição. Este livrinho é um livrinho pretensioso, porque nasceu de uma ilusão, a ilusão de que a literatura pode, de alguma maneira, ajudar-nos transcender a ilusão. Por processos não lógicos. Quando falo em ajudar-nos, não me refiro a qualquer tipo de pretensão de missionarização que o livro tenha; quando escrevo é para eu própria tentar aprender, o que ainda não consegui, razão pela qual me parece que não poderei ficar-me por este livro, terei que continuar a escrever livros, terei que continuar o trabalho, o meu trabalho tem que continuar. Entretanto, parece que vai havendo alguns leitores de boa-vontade querendo partilhar isso, em reunião, em convento.
E no meio da serra, o que significa: no meio do silêncio.
Andámos por aqui durante nove meses escrevendo e preparando (e procurando) o espectáculo. Escrever foi uma forma de preparar o espectáculo, preparar o espectáculo foi uma forma de escrever. Fui observando, sentindo e escrevendo. E lendo. Este livro foi escrito com corpos, cheiros, vozes, música, sabores, dança, sonhos, medos, perplexidades. Nesse aspecto, na sua união com o espectáculo, é quase completo. Como produto material final é apenas uma vaga sombra do que quis ser. O que já era de esperar. Somos sombras, criamos sombras. Mas em nós está a luz. Por isso, há que continuar. Por causa da saudade da luz. Por causa da esperança.