1ª SESSÃO DE LANÇAMENTO DE VENITE IN SILENTIO
Lisboa, Livraria Ler Devagar, 2004-09-22
Começo por agradecer à Ler Devagar o acolhimento que nos dá neste espaço útero de livros e aproveito para felicitar um projecto de Livraria diferente, isto é, de uma Livraria como deve ser, aquela que não se limita a vender livros, mas acolhe as pessoas e os livros.
Agradeço também à UNICEPE na presença do Presidente da sua direcção, Dr. Rui Vaz Pinto, que se tenha interessado por este projecto e connosco tenha feito esta viagem que, reconheço, é muito pouco canónica do ponto de vista editorial. São assim as editoras quando não se limitam a editar mas põem alma naquilo que fazem. Há editores que acham que vale a pena perder dinheiro por uma causa em que acreditam. Agradeço também ao amigo que veio do Porto, onde vive e onde deixou trabalho a acumular, para poder acompanhar-nos neste momento que quisemos colectivamente celebrar.
Agradeço ao meu querido amigo António Cândido por quem tenho o afecto que se tem a um irmão e ao escritor António Cândido Franco por cuja obra tenho a grande admiração que se tem perante uma obra original, séria, consistente e criativa.
Agradeço-te também o esforço que representa a tua presença aqui hoje tendo que estar amanhã em Évora às 8.00 da manhã para dar aulas.
Agradeço ainda a todos os familiares, amigos e amigas aqui presentes e gostaria de deixar aqui dito que vejo, em cada um dos meus amigos, um herói que admiro e imito dentro das limitações que tenho. Há quem tenha como ídolos o Super-homem, o homem aranha, a Madona, o Bush (há gente para tudo), mas para mim, os meus heróis são os meus amigos, porque cada um deles encarna, pelo menos, uma característica de herói. Permitam-me que me dirija em especial a um dos heróis aqui presentes: o meu super-herói: está aí na cadeira onde se desloca, o senhor economista à procura de emprego, para além disso excelente poeta, excelente narrador. Digo que é um super-herói porque para se viver numa cadeira de rodas com ... sucesso, como agora é moda, é preciso ter muito mais qualidades do que qualquer outro humano; qualidades físicas e morais.
Experimentem um dia sentar-se numa coisa destas e tentem fazer a vossa vida, entrar num metro, num autocarro, chegarem-se ao balcão de um pastelaria, tocar a uma campainha, gestos banais, e verão o resultado. Existem também uns heróis ocultos por detrás deles...
Finalmente e especialmente, o meu agradecimento à Companhia de Dança Amalgama e a todos os artistas envolvidos neste projecto que envolve dança, voz, representação, música, artes plásticas, imagem, escrita.
Passo a explicar resumidamente a gestação de 9 meses que nos trouxe até aqui:
Tudo se iniciou com amizade e cumplicidade, a melhor forma de se começar qualquer coisa. A amizade não dá dinheiro mas engrandece e aquece as almas.
Foi a amizade com o Pedro e depois com a Sandra e a Jana e o Paulo, alguns dos bailarinos fundadores da Amalgama, e depois todos os outros que vim a conhecer, que me levou a acompanhá-los no seu projecto como Companhia de Dança praticamente desde o primeiro dia, quase desde o momento em que escolheram o nome, um nome que imediatamente me agradou, porque
AMALGAMA tem:
a forma verbal, mas que também pode ser um nome, "ama" duas vezes: no princípio e no fim, tem "malga", que contém alimento, tem "gama", a letra grega cuja forma é a do esquadro, símbolo da rectidão, o que faz todo o sentido quando se fala em Amalgama. Amalgama é um grupo de pessoas que também são artistas mas que se sentem, acima de tudo, pessoas, que procura a rectidão interior através da arte, uma rectidão que está para lá das morais do tempo mas que contém uma ética intemporal, se quiserem e não se chocarem muito com isso, eterna. Não será por acaso que estas personagens passeiam entre dois tempos separados por nove séculos, e a ética de todos é sempre a mesma: a da busca, a da comunicação, a da transformação, a da criação, a do amor.
E "Amalgama" contém também "alga" e assim tem o mar, e até contém dentro a palavra "mal" como não podia deixar de ser para ser completa, que os santos, os que se proclamam perfeitos e arredios do mal são sempre de desconfiar. Os artistas da Amalgama não voltam as costas ao mal mas olham-no nos olhos e assim o dominam e assim o transformam. Porque sabem que neles está o mal e o bem e que apenas se designam assim porque estão separados, e que uma vez unidos a distinção deixa de fazer sentido.
Creio que só por acidente são bailarinos, actores, músicos, artistas plásticos, etc. Estas pessoas vêem a arte não como um fim mas como um método para a realização do ser. Eu tenho a sorte de vir aprendendo isso com eles e agradeço-lhes.
Mas voltando ao meu percurso com a Amalgama, recordo que escrevi um pequeníssimo poema "Sensualua" para o primeiro espectáculo, Viagens de Luar.
Depois escrevi também para outro espectáculo A Luz e o Desejo e no ano passado, escrevi dois poemas para o segundo projecto da Amalgama no Convento de São Paulo: Mutações e escrevi também um texto a partir da observação dos ensaios que foi igualmente integrado no espectáculo.
Tratou-se, sem o sabermos ainda, de uma espécie de ensaio para o projecto que se seguiria: este projecto, Venite.
Desta vez, a equipa que habitualmente para além da dança já incluía vídeo, música ao vivo e texto, foi ampliada à vertente voz, representação e artes plásticas. O texto, que até aí consistira em apontamentos poéticos, tomou a forma de ficção.
Inspirámo-nos em alguns dos mais de 50.000 azulejos deste convento cujas pedras mais antigas datam do século XII mas que sabemos estar construído sobre anteriores eremitérios e um convento anterior ao século XII. Para lá fomos viajando pelo menos um fim de semana por mês a partir de Janeiro (a ficção começou lá a tomar forma ainda em Dezembro, porque sabia que tinha que estar terminada no máximo em Junho por causa do processo editorial, que foi dos processos mais rápidos a que já assisti); e assim se escreveu um livro mais depressa do que o diabo esfregou um olho, foi um parto de sete meses. O espectáculo teve mais dois meses. Acontece que isto só foi possível escrever livro assim porque ele já estava escrito: nas pedras, nos azulejos, nos corpos; apenas me limitei a soltar as palavras. Viajámos no espaço a partir de todos os pontos do país, desenhámos a bússola, de ocidente, Lisboa, à Serra d'Ossa, do sul, Algarve, à Serra d'Ossa, do norte, Porto, à Serra d'Ossa, do oriente, Vila Viçosa, à Serra d'Ossa, mas viajámos também no tempo, entre o século XII e o século XXI. No século XXI os protagonistas somos nós, no século XII provavelmente também, apesar de as personagens serem um frade chamado Tobias, um Abade chamado Antão, um noviço chamado Narciso que depois roubou o nome a um anjo, uma Sibila chamada Conceição, um ser da natureza chamado Malaquias.
A equipa Venite aqui fica para sempre registada neste livro enquanto equipa (LER) e enquanto personagens da ficção, embora, como se tratou de um processo vivo e dinâmico, dois ou três elementos entretanto tenham saído e outros se tenham integrado já depois da entrada do livro na tipografia. São eles:
- O Paulo Sousa, na dança
- A Rita Ariadne, na percussão
- O Miguel Leiria, no contrabaixo
Quero fazer ainda um destaque especial para a belíssima capa do Jorge Pereira, também autor do cartaz, do flyer e do marcador, bem como das fotografias com qualidade que constam do livro (enfatizo as fotografias com qualidade porque estão lá outras que nem por isso. São as minhas).
Aqui estamos hoje a proceder ao lançamento deste livro, que para além de ser lançado, vai efectivamente ser dançado nos espectáculos a partir do dia 1 de Outubro e até dia 9, no Convento de S. Paulo na Serra d'Ossa.
Finalmente, e regressando ao lançamento, não sei se se recordam os que estiveram no lançamento do meu último livro, O Arquitecto, no Palácio das Galveias, que eu manifestei um certo cepticismo acerca da eficácia dos lançamentos, porque os livros tendem a ficar semi-escondidos nas prateleiras mais fundas das livrarias. Disse também, se se recordam, que sonhava um dia poder fazer um verdadeiro lançamento, e cito parte do que disse na altura:
[...]. Porque eu vejo estes momentos a que é habitual chamar "lançamentos" , muito mais como uma retenção. O lançamento, o voo do livro, é depois, como um filho que libertamos do nosso colo e a quem conferimos a liberdade do risco do voo.
Ainda um dia, quando enlouquecer de vez, e os editores também, e ser editor é já sê-lo de certo modo um bocadinho, e editar livros como este, onde não se fala de sexo nem se espreita a privacidade de ninguém é como percorrer um arame sem rede, apesar de tudo eu tenho esperança que eles um dia enlouqueçam mais um bocadinho e me deixem fazer um lançamento como eu gostaria:
Iríamos aí todos à procura do terraço mais alto de uma biblioteca de Babel que eu acredito que aí esteja algures, oculta, até porque Lisboa está, deliciosamente, a transformar-se numa Babel no melhor sentido, pois nunca aqui, nem nos melhores momentos, se falaram tantas línguas nem nos pintámos de tantas cores, iríamos, repito, por aí, e do cimo dessa Babel procederíamos ao lançamento dos livros no sentido mais físico e mais dinâmico do conceito. Se os livros forem mesmo bons, acredito que voarão... é claro que isso implica riscos, o risco de os vermos desaparecerem no voo ou o risco de... se estatelarem cá em baixo...
Mas é pouco provável esta última hipótese, em primeiro lugar, e desculpem-me a imodéstia, porque acho que os meus livros são bons, e em segundo porque o destino dos livros foi sempre o ar ou o fogo: ou a liberdade ou a fogueira; quando conseguiram escapar às várias fogueiras que o medo de alguns homens foi acendendo, eles foram sempre os maiores viajantes do universo.[...]
Por isso aqui estou hoje a cumprir o que prometi e a realizar o que sonhei. Este livro vai mesmo ser lançado.