POEMAS IMPERFEITOS
Maria Virgínia Monteiro
Poesia
Unicepe, 2006
Páginas - 48
Formato - 148x210 mm
Peso - 90 g
PVP - 7,35 €

      POEMAS IMPERFEITOS

Maria Virgínia Monteiro


Mais uma vez Maria Virgínia Monteiro me comete a espinhosa tarefa e me concede simultaneamente a honra de falar de mais um livro seu, destes Poemas que a Unicepe edita e que ela rotulou de Imperfeitos. Este título justifica-o ela, na sua introdução autodepreciativa, pelo recurso do poeta à forma rígida do soneto, a rimas consideradas estafadas, a «temáticas outonais e melancólicas», à abordagem de uma já desusada poesia do eu.

Foi-me apenas pedido que falasse, mas não que abonasse o seu próprio desabono. E não vou fazê-lo. Confesso que não tenho qualquer inclinação para ir para a porta dos tribunais atirar pedras ou impropérios aos suspeitos ou incriminados, dar mais um pontapé em quem já foi atirado por terra, amontoar mais delitos no rol dos crimes que alguém praticou. Pelo contrário, talvez porque, sabendo-me homem, me acho sempre capaz do erro, vejo-me permanentemente do lado dos mais fracos e procuro sempre as conjunturas que determinaram as imperfeições e as justificações que poderão servir-lhes de atenuantes. É possível mesmo que, depois de ter lido a mea culpa da contrita autora, eu que estudei para padre durante uns sete anos, possa dar-lhe ao menos alguma absolvição.

A única explicação dada por Maria Virgínia Monteiro como atenuante foi o facto de ter encerrado os poemas numa gaveta durante mais de trinta anos, «fugindo à reprovação da época» e à espera talvez de ganhar coragem para rasgar os versos ou chegar-lhes um fósforo... ou seja, de sacrificar um pedaço de si própria. Terá preferido, mais tarde, a avaliar pelo último soneto da colectânea, Autobiografia, admitir que nunca será «dos escolhidos, dos primeiros (dos bem-amados senhores do Absoluto!)», mas, num assomo de pundonor, não irá abjurar o que é seu e não se renderá aos «que possuem da Verdade o usufruto» e pretendem apontar-lhe «caminhos verdadeiros».

E, como os «caminhos verdadeiros» se revelam, afinal, múltiplos e até contraditórios, creio que fez bem em seguir o seu próprio caminho e deixar ladrar os cães. Se perfeitas são apenas as intenções, como diz nesta obra um sábio árabe, bastar-nos-ia pensar que quem escreve um livro faz uma dádiva de si mesmo e que quem tudo dá a mais não é obrigado.

O que não falta aí é quem se arrogue o direito de definir como lei o que é a Poesia e o que deve ser o Poeta. A Inquisição reinstala-se: há temas proibidos, há palavras riscadas do léxico poético, há formas ultrapassadas, há poetas banidos. Há quem determine que o tema do amor se esgotou ou quem queira interditar o tema da morte. Há quem queira obstruir a poesia do eu ou quem queira embargar a poesia com preocupações sociais ou ainda quem considere que a narratividade não tem lugar na poesia. Há quem tenha a mania de tudo etiquetar: se se fala numa criança sem brinquedos, trata-se logo de poesia neo-realista; se se deixa cair no poema um pouco de luar ou uma asa de gaivota, logo se retrocede ao tempo do romantismo. Uns porfiam em apear os temas eternos, como se o não fossem; outros recusam os temas triviais, como se as pequenas coisas, pelo poder metamórfico da poesia, não possam ascender ao estatuto de grandes coisas. Em tudo, na vida de todos os dias, há caminhos opostos a ter em conta nas nossas opções. Por exemplo, que via tomar: a da novidade ou a do regresso às origens? Qual é a verdadeira? Não serão ambas válidas? Até a palavra “poesia” gera controvérsia: como se pronuncia? “Poèsia”, como se ouve constantemente, ou “poìsia”, como explica o meu dicionário da Porto Editora?

Bem sei que, com o Modernismo, muito se alterou, mas, se com ele, chegou um tempo de maior liberdade, porquê tantos sinais de proibição e de sentido único? Gastão Cruz afirma que «não faz já, realmente, muito sentido reservar-se a designação de moderna para a poesia dos últimos cem ou cento e vinte anos» e acrescenta que «Shakespeare é tão moderno como Whitman, Camões como Pessoa, Blake como Rilke, Hölderin como Apollinaire, Keats como Rimbaud». Depois socorrendo-se de Jorge de Sena, que asseverava que «houve sempre modernistas», conclui que «a linguagem da poesia é o mundo e o tempo em que se vive». E qual é o tempo em que vivemos?

Maria Virgínia Monteiro apouca-se na aceitação, como verdade inelutável, da frase de Camões: «todo o mundo é composto de mudança», admitindo assim que usou formas, rimas e temáticas do passado, chamando a estas «outonais e melancólicas». Começando por aqui e até de certa forma apoiado na expressão «luz decadente» que surge no soneto Primavera apressada, eu chamar-lhes-ia, sem qualquer problema, “temáticas decadentes ou decadentistas”. A própria linguagem é decadentista. Bastaria atentar na quantidade de modificadores utilizados pelo poeta, a maioria obedecendo à isotopia da “perda”: sonhos perdidos, lugar perdido, trono perdido, asa perdida, sombra perdida, barco perdido, perdidas rotas, folha perdida, ave perdida, perdida inocência...

A perda estende-se ainda a muitas outras adjectivações que facilmente se associam a algo que foi objecto da usura do tempo, (a cuja fugacidade, aliás, são feitas pelo menos 14 referências): folhas soltas ou caídas (pelo menos 5 vezes), asa ferida ou quebrada, rosa murcha, tronco morto, esporas rotas, armas botas, sonhos lassos, barco espedaçado, barco desfeito, espelho quebrado, beiral destroçado, luz decadente. A tudo isto se agregam os vocábulos que remetem para a ideia do “logro” e que não deixam de enriquecer a mesma isotopia da perda: engano, enganoso, fantasias, ilusões, alegrias inventadas, desgostos, falhadas primaveras.

A maior parte dos nomes e formas verbais utilizados contribui para adensar a mesma atmosfera: saudades (5 vezes), morrer e morte (8 vezes), enterro e termos da mesma família (4 vezes), despedida, adeus, agonia, nostalgia, cansaço, desalentos, declinar (do sonho), crepúsculo, sol-posto. O sofrimento e afins encontram-se bem representados em palavras como dor ou dores (14 vezes), triste e respectiva família (11), amargo e seus cognatos (6), lágrimas (4), choro e derivados (5), lamento, sofrimento, sofrer, etc. Poderíamos ainda coligir, nos Poemas Imperfeitos, outros vocábulos que, à partida, parecem ter uma conotação negativista: chuva (9), quase sempre como indício das lágrimas, vento (6), neve (2), noite ou nocturno (4), sombras (4), névoa (3), tempestade, tormenta, vendaval, inverno, invernia, Dezembro, escuridão, bruma, solidão, etc.

Finalmente, mas em primeiro lugar na contagem, se a fiz bem, o vocábulo “tarde” (nome ou advérbio) ou termos da mesma família, como tardinha ou entardecer, surgem 19 vezes! E não deixo de associar esta recorrência a um dos mais belos e melancólicos poemas da literatura decadentista portuguesa, intitulado À tarde e da autoria do também espinhense (por adopção) Manuel Laranjeira.

É verdade que é costume dizer-se que o termo decadentismo começou a circular por volta de 1880, referindo-se a escritores que, como Oscar Wilde, Rimbaud, Mallarmé, Verlaine, compartilhavam uma atitude entediada face à vida real, desencantada com o que se julgava ser a dissolvência da civilização e apostada consequentemente na procura de novas e mais fortes e mais extravagantes sensações, que conduziam os escritores finisseculares para a obsessão da Beleza e para o mesmo apuro formal e o mesmo fascínio da musicalidade que hoje podemos encontrar também em Maria Virgínia Monteiro, como se ela própria se encontrasse deslocada para o tempo em que Luís de Montalvor dizia: «Somos os decadentes do século da Decadência. Vamos esculpindo a nossa arte na nossa indiferença. A vida não vale pelo que é mas pelo que dói... Só a Beleza nos interessa...».

Já Baudelaire, antes de 1880, antecipava essa postura decadente, não sendo por acaso, certamente, que a autora dos Poemas Imperfeitos antepõe uma citação de pendor decadentista do poeta de As Flores do Mal ao soneto Noite. Baudelaire associa, nesta citação, a noite com a Dor: «Sois sage, ô ma Douleur, et tiens-toi plus tranquille. Tu réclamais le Soir». O sujeito poético em Maria Virgínia Monteiro, deixando-se seduzir pelo antivital, associa-a com a Morte:

      «ó noite da mão pálida e macia
      com o jeito frio e terno do diamante
      a cortar o solitário duro instante
      a acalmar toda esta febre esta agonia»
Ora não foi Baudelaire quem escreveu: «Tout est néant, excepté la mort.»?

Ocorria o decadentismo nos finais do século XIX, onde à agonia do século e apesar de todas as conquistas da ciência e da técnica e do fascínio pelo positivismo, se juntava a falência de todos os ideais e as desilusões da política.

Ora, apesar da verificação camoniana de que tudo é composto de mudança, não é verdade que, afinal, volvido mais um século e apesar de todas os progressos científicos, de todos as conquistas no espaço sideral, da segunda industrialização no pós-guerra, dos eufóricos anos 60 que prometiam a absoluta liberdade e a abundância para todos, e o amor em vez da guerra («make love not war»), o Mundo prossegue na mesmíssima ou ainda mais avançada degradação? Se há mudança, parece agora que o princípio de Lavoisier se reformulou para: Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma... para pior...

Sim, que diferenças fundamentais se operaram? Foi-se embora o cepticismo ou está agora mais requentado e requintado? E a crise de valores: também se esvaiu? E os projectos políticos e ideológicos são agora mais credíveis? E onde estão agora as utopias: cada vez mais próximas ou muito mais irrealizáveis? E os nossos sonhos: têm os alicerces na nossa capacidade de mobilização ou desvaneceram-se apodrecidos de cansaço e de desilusão e de impotência? Apesar dos avanços da medicina, da sociedade de consumo e bem-estar prometida em cada anúncio publicitário, vários flagelos continuam por aí a galope: epidemias, o terror da fome, do desemprego, da miséria, o terrorismo dos poderosos e ocupantes, o terrorismo dos que não têm qualquer outra arma. Onde estão as certezas, a serenidade, a auto-estima? O que modificou para melhor naquele mundo de tédio, de spleen, de aflição, que António Nobre descreve no seu poema Vida: «Ó meu amor! é para ver tantos abrolhos, / Ó flor sem eles! que tu tens tão lindos olhos! / […] Ó meu Amor! antes fosses ceguinha...»?

E se, como dissemos atrás, com Gastão Cruz, «a linguagem da poesia é o mundo e o tempo em que se vive» e é, afinal, um século depois, ao virar a página do século XX, uma vida ainda mais decadente do que aquela que o autor do Só, ou o sujeito poético do seu poema, foi buscar ao longínquo ano de 1891 e pôs diante dos olhos da amada e dos nossos, então não haverá razão para os poetas serem de novo decadentes (neodecadentes)? Não haverá, então, lugar para a poesia de Maria Virgínia Monteiro?

Bem sei que estes Poemas Imperfeitos falam sobretudo de uma vida pessoal, de uma partícula, atenta, porém, às lágrimas dos outros, como se depreende do poema humanaum, que diz, afinal, o que eu fui dizendo: «que os tempos pelos séculos correndo / não mudaram» e que «o riso o mesmo riso / e as lágrimas que choraram / ainda ainda as mesmas / correndo noutros rostos.» Mas a Vida é a soma da vida de todas as partículas que são como todos os átomos idênticas. Tudo é poesia do eu, porque, mesmo ao falar dos outros, só posso falar de mim, do que eu vejo, do que eu sinto, do que eu próprio experienciei, das minhas aspirações e ideais que podem ser generalizáveis, mas são sempre meus. É por isso que o sujeito poético, ao falar, no segundo poema da colectânea, das «infindáveis caminhadas» que são da vida de todos, apenas pode usar o singular ao dizer às folhas soltas: «Aqui vou».

É natural que o poeta que queira fugir à sordidez dos dias que fazem a sua vida, buscando a beleza, o mais não seja nas formas escolhidas para vazar o seu poema, venha a concluir que a forma fixa do soneto é, porventura, com a sua organicidade triangular (três partes assim constituídas: 2 quadras, 2 tercetos e a chave de ouro), a forma mais adequada para transmitir a plenitude do belo e do próprio sentido. Lembremos que três é um número sagrado e cabalístico, presente em quase tudo: resume os ciclos da vida (o nascimento, o apogeu e a morte), a natureza tríplice de Deus, o conhecimento segundo Pitágoras (Música, Geometria, Astronomia), as esferas concêntricas do Universo (o natural, o humano e o divino), o tempo (passado, presente e futuro), a dimensão completa do Homem (a mente, o corpo e a alma). É a solução do dualismo e o resultado da procriação (homem, mulher, criança). Assim como se faz um corpo com a cabeça, o tronco e os membros ou como se edifica uma casa com alicerces, paredes e telhado, assim se escreve uma narrativa (introdução, desenvolvimento, conclusão), assim se constrói um discurso (exórdio, confirmação e peroração), assim se arma um silogismo (duas premissas e uma conclusão), assim se completa o processo dialéctico hegeliano (tese, antítese, síntese). Depois, poderíamos ir à Bíblia e encontraríamos o número três em toda a parte, não só para exprimir a Trindade, mas para falar do próprio Cristo, morto aos 33 anos, vendido por 30 dinheiros, negado três vezes por Pedro, crucificado entre dois bandidos, pregado na terceira hora, entregue a três mulheres que tratariam o seu corpo e ressuscitado ao terceiro dia, para ficarmos apenas por aqui. Conclua-se, pois, que, no número três, reside a ideia de perfeição e de plenitude, consubstanciada no ditado popular: «Três é a conta que Deus fez».

No âmbito da poesia, tenho para mim que a forma estrófica mais breve, a que é mais fácil conferir (ou, no mínimo, sugerir), um sentido completo, uma intencionalidade comunicativa, é a tercina. A tercina ou terceto nasceu com Dante na Divina Comédia que, ao escrevê-la, não apenas fez o repositório completo dos conhecimentos enciclopédicos da Idade Média, como, afinal, também ele, a apologia do número três, com um sentido cabalístico: a sua epopeia é uma trilogia, em que se vêem contemplados o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, dividida cada parte em trinta e três cantos (mais um para o Inferno, para perfazer os cem), repartidos em tercetos encadeados. Vasco Graça Moura, na introdução à tradução que fez desta obra monumental, vê no uso da “terza rima” «uma espécie de transposição silogística que concorre para o efeito musculado do discurso, com as suas premissas e a sua conclusão.

O soneto, que integra também dois tercetos, reproduz esta estrutura lógica triangular. As três partes constitutivas de um soneto oferecem idênticas possibilidades intencionais, com mais possibilidades comunicativas, como é bom de ver, sem, contudo, permitirem a divagação, o circunlóquio, a fuga à grande marca poética que é a concisão.

O soneto é, assim, uma fórmula mágica perfeita para sustentar e comprovar um raciocínio ou demonstrar um teorema, com base num silogismo de duas premissas (as quadras e os tercetos, ou seja, a tese e a antítese), que irão culminar numa conclusão, ou síntese, ou chave de ouro, o último degrau do poema onde o poeta senta uma das principais qualidades da boa poesia: a capacidade de surpreender. «Não vejo, entre o soneto e o silogismo, / nenhuma diferença de proposta. / São ambos adequados a quem gosta / de converter palavra em algarismo» - escreveu o poeta brasileiro Glauco Mattoso. Tem assim o poeta ao seu dispor, sobretudo o poeta mais lúcido e avesso ao delírio, uma «máquina de pensar», como lhe chamou Antonio José Ponte. É certo que essa estrutura é uma moldura fixa da qual não pode sair, mas não tão rígida que o poeta de hoje não possa mexer-se com algum à-vontade. Maria Virgínia Monteiro inicia a sua introdução com a referência à «gaiola de catorze versos» que constitui o soneto que muitos depreciarão. A expressão é de Menotti del Picchia que tenta valorizá-lo:

      «Soneto! Mal de ti falem preversos
      que eu te amo e te ergo ao ar como uma taça.
      Canta dentro de ti a ave da graça
      na gaiola dos teus catorze versos.»
Dentro da gaiola, objecto quase imoral, canta a ave da graça... É que o cárcere acanhado dos catorze versos não impede a inspiração do poeta, antes constitui um desafio às proezas do pássaro para entretecer o seu canto. É o que faz, aliás, o meu canário, que canta especialmente para mim e consegue encantar-me, verdadeiramente surpreender-me: como é possível jorrar tanta música, com tantas variações, de um pequeno novelo amarelo e saltitante como aquele? Baudelaire, que também utilizou magistralmente o soneto (As Flores do Mal contêm mais de 60 sonetos assumindo as mais variadas formas: decassilábicos, dodecassilábicos, invertidos, ingleses, italianos, etc.), escreveu que «quando a forma é “contraignante” (constrangedora), a ideia jorra mais intensamente”. Maria Virgínia Monteiro diz ainda, citando alguém, que o soneto não passa de «um jogo de armar», referindo-se certamente ao imprescindível «casamento da arte com a técnica» e à disciplina mental e ao rigor parnasiano de que tem que estar munido o poeta para escrever um bom soneto. Ora os poetas não são apenas seres dotados de ideias como toda a gente. Os poetas têm que ser muito mais do que isso: domadores de palavras. Porque querem agora depreciá-los como tal? Os espanhóis Antonio García Berrio e Teresa Hernández Fernández escreveram que o soneto é «a mais prestigiada e frequentada das composições clássicas, que teve um culto ininterrupto – e mesmo hoje em dia crescente – até à poesia moderna».

Há toda uma tradição do soneto e creio que ele se praticará enquanto for permitido escrever poesia. Depois de Petrarca, de Shakespeare, de Alexandre Pushkin, de Sá de Miranda, de António Ferreira, de Diogo Bernardes, de Frei Agostinho da Cruz, de Camões, de Góngora, de Quevedo, de Lope de Vega, de Teresa de Ávila, de S. João da Cruz, de Bocage, de Anastácio da Cunha, de Machado de Assis, de Gonçalves Dias, de Manuel Bandeira, de Olavo Bilac, de Raimundo Correia, de Olegário Mariano, de Augusto dos Anjos, de Camilo, de João de Deus, de Antero de Quental, de Camilo Pessanha, de Cesário Verde, de António Nobre, de Gomes Leal, de Eugénio de Castro, de António Feijó, de João Penha, de Gonçalves Crespo, de Florbela Espanca, de António Botto, de Pascoaes, de Manuel Laranjeira, de José Duro, de António Sardinha, cederam às suas graças, quer seja à sua forma canónica, quer seja a todas as suas possíveis variações e recriações, Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Drummond de Andrade, Vinicius, Cesarinny, Alexandre O’Neill, Ruy Belo, Jorge Luís Borges, um mestre da escrita breve, Miguel Torga, José Régio, Nemésio, Pedro Homem de Mello, António Correia de Oliveira, António Pedro, António Gedeão, Pedro Támen, Ary dos Santos, Joaquim Pessoa, Fernando Assis Pacheco, Manuel Alegre, enfim, apenas aqueles que me ocorrem e, como se vê, já se trata de um número convincente para não se menosprezar este subgénero da poesia lírica, que resiste ao tempo e ressuscitou mesmo do ostracismo a que foi votado pelo Romantismo.

Numerosas antologias privilegiaram o soneto, contribuindo para a divulgação dos melhores e certamente para a sua longevidade. A própria Unicepe publicou, em 2004, A Circulatura do Quadrado, Alguns dos mais belos sonetos de Poetas cuja Mátria é a Língua Portuguesa, coligidos por António Ruivo Mouzinho, que faz uma interessantíssima e longa introdução onde se pode aprender tudo quanto diz respeito ao soneto. É difícil fazer melhor.

Dois anos antes, publicaram José Fanha e José Jorge Letria, na Terramar, Cem Sonetos Portugueses, em cuja introdução se lembra que o soneto «é a arte que o tempo não fez prescrever nem colocou irremediavelmente fora de moda e que mergulha as suas raízes na nossa melhor tradição lírica, ou seja, no caudal de sons e de sentidos onde a mais sólida poesia contemporânea vai beber os elementos estruturantes da sua identidade.»

Convém não esquecer que Maria Virgínia Monteiro é filha de peixe: de alguém que se revelou exímio nessa forma e, ainda que meteoricamente, foi um poeta de renome e capaz de levantar acesas polémicas com os seus sonetos anticlericais do Padre Nosso e de Ave Maria, lançados numa época, 1932, que começava a ser demasiado vigiada. Sobre ele, Manuel de Oliveira Guerra, tive o prazer de escrever um longo ensaio que sairá certamente este ano em revista da Universidade de Aveiro.

Para além de intrusos no tempo, o que não corresponde à verdade, pois acabámos de provar que o soneto é a eterna homenagem a Petrarca, Maria Virgínia acha os seus poemas imperfeitos. Fica-lhe bem a modéstia, mas refira-se já agora que o modernista Mário de Sá-Carneiro, o poeta do “Quási” («para atingir faltou-me um golpe de asa»), que não escreveu tão poucos sonetos quantos seria de imaginar, os enviava a Fernando Pessoa, pedindo para os julgar, mas achando-os, logo à partida, «maus», «péssimos», «estaferminhos», «estuporinhos».

Apesar disso, o autor da Dispersão, célebre sobretudo por aquela cissiparidade do eu presente em tantos poemas («Eu não sou eu nem sou o Outro, sou qualquer coisa de intermédio») transformou-se num dos autores mais influentes, sobretudo nos escritores da Presença, o que não seria previsível se olhássemos unicamente para as suas rimas, tantas vezes banais, em ar ou em ada ou em ido.

Ora, a nossa autora aniversariante, no seu processo de autocondenação, diz recear ter caído na armadilha das rimas pobres, como aconteceu (é o exemplo que dá) com sono e outono. Claro que, se consultasse um dicionário de rimas, teria ao seu dispor cerca de vinte vocábulos com a mesma terminação. Mas será que teria sido preferível rimar Outono com abono, com arimono, com caramono, com embono, como prono, ou com tambono? Abandono seria o que talvez se relacionasse melhor. Mas quantas mais vezes foi essa rima já utilizada? Não são muito mais pobres as rimas em ar ou entre particípios passados? Não continuam por aí aos tombos? É preferível trair uma ideia com uma rima estapafúrdia, por mais original que seja?

Teria eu os meus 13, 14 anos, quando encontrei um livro de estilística do P.e Abel Guerra, que ainda conservo, ou seja que adquiri muito mais tarde quando o pude fazer de moto próprio. De moto próprio também o estudei e aprendi nessa altura os elementos fundamentais para quem gosta de bem escrever. Há nele um capítulo sobre as qualidades essenciais do estilo. A primeira é a originalidade, que compreende a originalidade de pensamento (e foi aí que aprendi o que era o crime do plagiato, hoje mais conhecido por plágio, e que sempre me repugnou, porque nem nos exames era capaz de copiar fosse o que fosse) e compreende também a propriedade, definida como sendo a «perfeita correspondência do pensamento e da linguagem» ou a «íntima união do fundo com a forma».

Aqui se vê logo que ser original é importante, mas sê-lo ao ponto de atraiçoar com a linguagem o pensamento, isso seria estragar tudo. E a nossa autora não tropeça nesse vício. Mas, depois, vem a segunda qualidade do estilo – a naturalidade ou espontaneidade, «suprema regra do culto do belo», definida como «modo de dizer as coisas como as temos impressas na alma, sem esforço, afectação ou rebuscamento», conseguindo-se, assim, «aquela difícil facilidade, aquela arte sem arte, tão preconizada pelos mestres». Esforço, artifício, afectação, extravagância são vícios em que também não incorrem estes Poemas Imperfeitos, apesar de toda a sua alegada imperfeição. Mau grado a pobreza das rimas, repare-se na facilidade natural desta escrita. Um exemplo entre muitos possíveis:


      mundo tamanho, tão sem fim julgava eu ter
      na minha mão quando tocava a tua mão
      e era uma chama o meu olhar só de te ver
      e a minha boca em tua boca uma oração

      tudo eras tu; tudo era eu dar tudo era crer
      em ti, na vida, corpo e alma em comunhão
      tudo era em mim ser só em ti e eu nada ser
      sonhos perdidos, sonho loucos que lá vão!

Os poetas são aparentados com os deuses, mas até estes, na Grécia antiga, não eram perfeitos e tinham os vícios dos homens. No entanto, estava decretado que os mortais estivessem separados deles por um abismo inultrapassável. Quem tentasse atravessá-lo cometeria o pecado da arrogância (?ß???) e cairia na loucura (?t?), podendo provocar a ira divina (??µes??) e a consequente punição.

Maria Virgínia Monteiro não é, pois, arrogante, nem cai na loucura de considerar perfeita a sua obra. Acrescente-se que o poeta que utiliza a forma do soneto, também dificilmente cai no delírio ou na loucura, porque, por mais emotivos, confessionais, impulsivos, narcísicos, lamentosos, eivados de auto-piedade que queiram ser os seus versos (é o lado dionisíaco, mais nocturno, do criador que se esforça por romper os limites), a forma ajuda a racionalizá-los, a discipliná-los, a deixar entrever apenas um pouco da extensão das desditas do sujeito poético (é agora o lado mais apolíneo, mais diurno e intelectualizado da criação).

Mesmo assim, com todos os defeitos que a própria autora arrolou contra si, estes versos impressionam pelo tom decadentista que já assinalei, comovem pela recorrência dos motivos, que são argumentos de sinceridade, e os últimos sobretudo, aqueles que falam da morte, pois há na colectânea toda uma sequência lógica e temporal que aí vai desembocar (tudo aí vai confluir), chegam a ser algo perturbantes. Alarmantes mesmo, porque ao ler os últimos sonetos que se completam mutuamente (e ao ler sobretudo o soneto mar: «então – talvez então – eu saiba o jeito / das águas que me levam como um leito / no meu destino igual ao teu de mar») ocorreu-me o drama de Alfonsina Storni, poeta argentina, que se deixou levar pelas águas do Mar del Plata ou o da outra Virgínia, a Woolf, que entra no Rio Ouse com os bolsos pejados de pedras. Mas saiamos deste pélago, porque hoje é dia de aniversário...

Mas o que, em primeiro lugar, me tocou, talvez mais do que o sentido dos versos, foi a marca pessoal da autora, que há muito eu conheço e a que ela sabe dar relevância na leitura em voz alta e quis também vincar perante o leitor com o auxílio de pausas: trata-se daquela música que se desprende de tudo quanto escreve e que, com aqueles espaços em branco, nos lembra que a poesia é feita de melodia e também de silêncio (há quem diga que tende para o silêncio completo). A antologia de José Fanha e de José Jorge Letria a que fiz referência lembra que Valéry notara a «hesitação [do leitor] entre som e sentido» e que ela atinge a sua plenitude verbal no espaço comunicante do soneto que, mesmo sujeitando a liberdade da escrita à regra canónica, não a priva de pujança e luminosidade».

Creio, pois, que comecei pelo som, mas depois lá veio o sentido. Lá diz T. S. Eliot que «a música da poesia não é algo que exista à parte do seu significado» e que «de contrário, poderíamos ter poesia de grande beleza musical que não faria sentido nenhum». Ora, a música que flui naturalmente desta pauta dos Sonetos Imperfeitos é uma música de um ritmo plangente, magoada, que, acompanhando os recorrentes significantes verbais escolhidos pela autora para falar da sua desdita, nos ajudam a apercebermo-nos do seu conteúdo semântico, deduzido das conotações a que atrás aludimos, relacionadas com a perda, o engano, a saudade, a morte.

Estes poemas narram, pois, uma história triste, a mesma do menino que, olhando a chuva pela janela, prevê um futuro de lágrimas. A cena mantém-se: a chuva estará sempre presente, mesmo quando não chove, porque as lágrimas, essas permanecem. O sujeito poético vê-se, ao longo dos poemas, a mesma folha solta, perdida, abandonada prematuramente e arrastada através das estações pelo vento e pelo tempo, que como o vento nos fustiga (diz-se em citação de anónimo), até ser tragada pela «avalanche no abismo», a «noite da mão pálida».

O drama está no facto de ser sempre tarde, desde o início, para recuperar o que algum dia teve (se é que teve). O drama reside ainda em sentir, mesmo assim, «este querer romper da terra sem semente», o ter sempre consigo «esta riqueza para dar que não se deu», pois a riqueza maior está em dar e não em receber, mas dar a quem? O drama consiste em haver «uma voz que teve voz para falar /e que antes de falar emudeceu». O drama é, em suma, ser cada vez mais tarde e olhar para as mãos e ver que a contrapartida de ser permanente dádiva é apenas possuir a cinza de um sonho ou ver regressar do passado nada mais do que fantasmas.

É um drama triste, comum porventura a todos os mortais, mas a que os bons poetas, como Maria Virgínia Monteiro, conseguem emprestar beleza. O tópos da perda é muitas vezes na literatura abordado através do motivo das aves que partem e regressam, enquanto tudo o que se teve e que era bom não mais se recupera. Raimundo Correia, um dos maiores poetas brasileiros, acaba assim o seu soneto decassilábico, As pombas (1879):



      «Também dos corações, onde abotoam
      Os sonhos, um por um, céleres voam,
      Como voam as pombas dos pombais:

      No azul da adolescência as asas soltam,
      Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
      E eles aos corações não voltam mais.»



António Nobre, no Só (1892), incluiu um soneto, este dodecassilábico, em que até parece ter plagiado o anterior. São assim os tercetos:



      Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
      Que me enchiam de lua o coração outrora,
      Partiram e no céu evolam-se à distância.

      Debalde clamo e choro erguendo aos céus meus ais:
      Voltam na asa do vento os ais que a alma chora;
      Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...



Nos Poemas Imperfeitos, surgem o mesmo tópos e o mesmo motivo, embora aqui as aves sejam andorinhas, mas com o benefício de não ter incorrido em qualquer semelhança formal, propícia à suspeita:


      elas vieram; mas de mim a sombra inteira
      ave perdida, tão sem eira tão sem beira
      tão sem ter voo, lá ficou. Então não mintas!

      mesmo que voltes, Primavera companheira
      do brilho antigo, engano doce voz primeira
      já não aqueces frias cinzas bem extintas.


É assim a poesia de Maria Virgínia Monteiro. Usando o tradicional soneto ou outras formas clássicas, ela não deixa que a sua poesia se deixe vencer pela rigidez. Os versos nem sempre são isométricos, porque é o ritmo que comanda e as pausas, assinaladas de maneira original, interferem na contagem e ditam inclusivamente a eliminação de certa pontuação. Esse processo de escrita inovador amplia a poeticidade destes poemas, correspondendo assim a uma preocupação de, como dizia João Gaspar Simões, «pôr a poesia em poesia».

Neste dia de aniversário de Maria Virgínia Monteiro e para festejar as suas bodas de diamante, foi ela quem quis dar-nos uma verdadeira prenda com este livro a que chama outonal, e que é, de facto, melancólico e belo como o Outono e vem ilustrado de uma forma sóbria e muito sugestiva. Associamo-nos a ela para agradecer ao Olimpo o ter-lhe concedido, nestes fecundos anos da sua vida, este dom da poesia que lhe faria merecer poder passar, um dia, sem qualquer punição, ao outro lado do abismo que separa o homem do empíreo e viver ali, ao lado dos deuses, mesmo que imperfeitos.


Porto, 25 de Maio de 2006

Anthero Monteiro







     LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS LIVROS DISCOS