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Gente terras dia a dia de Manuel Amaral "Região Bairradina", n.º 794, Fevereiro 2004 | |
Com data de 13 de
Novembro enviou-me o nosso querido e saudoso Manuel Amaral a sua
última obra, editada pela Unicepe, com poemas que eu já conhecia na
sua quase totalidade. Acusei imediatamente a recepção pelo telefone
e aproveitei para desejar o bom Natal que não vinha longe, mas a que
ele já não pôde estar presente. Prometi-lhe nessa altura que
escreveria umas notas, não nos dias seguintes mas assim que
satisfizesse uns compromissos que tinha. Na dedicatória diz-me estas
palavras simples mas tão tocantes: Para Luís Serrano, de que o vento
nos traz novas, finalmente o livro de versos, de que gostaria tanto
de ouvir palavras suas. (não resisto a destacar as últimas
palavras). E é aqui que eu
fico com um grande peso na consciência. Por que é que eu não passei
o livro para a frente de tudo o que eu tinha a fazer? O resto podia
esperar; o livro do Manuel Amaral não podia. Como é que eu não
percebi isso? Quando o Vítor me telefonou, eu apenas sabia que era
um telefonema de Amarante. Peguei no auscultador e disse qualquer
coisa como isto: Manuel, estou em falta, perdoe-me o atraso em lhe
dar a opinião prometida sobre o seu livro. Imediatamente, o Vítor me
interrompeu para me dizer: infelizmente não é o Manuel, sou o Vítor,
o filho, para lhe dizer que o pai faleceu no dia 18 tendo já tentado
contactar consigo sem o conseguir. Senti um baque no
coração, eu sabia que a sua saúde era precária, mas apesar de tudo
não contava e ao primeiro momento de alegria sucedeu o momento de
muita tristeza e de um grande remorso por não ter chegado a escrever
aquelas palavras que lhe poderiam ter dado algum contentamento. Tínhamo-nos
conhecido em Tondela num desses encontros de poesia que a Sol XXI organizava. Tinha
delicadezas que hoje se encontram cada vez mais raramente. Quis que
fosse eu a apresentar Alpondras na feira do livro do Porto (Maio de
2002) e essa foi a última vez que o vi. Fi-lo com grande prazer, com
aquela certeza de estar rodeado de amigos: a Maria Vitória (a
companheira de sempre), os filhos, as noras e os três netos e a
neta. Numa situação dessas, a satisfação que se tira é a de estarmos
a fazer qualquer coisa que ninguém nos obriga mas que fazemos com o
prazer das coisas simples (como quando se toma um chá em família,
por exemplo). Tudo neste livro é
também familiar, desde aquela espantosa fotografia a preto e branco
com o Teixeira de Pascoaes até à temática dos poemas: gente que
conheceu, directa ou indirectamente (Bento de Jesus Caraça, Luís
Veiga Leitão, António
Nobre, o vizinho Cândido, Miguel Torga, Agostinho Neto, Ilídio
Sardoeira, Carlos Paredes, Paulo Cid,) lugares que visitou na companhia da
família como Barcelona, Andorra, Lyon, Grenoble, Armona e poemas do
quotidiano que o mostram sempre como um homem atento aos outros e ao
mundo que o envolvia. A sua poesia era
fortemente narrativa e pormenorizada quase até à exaustão como se
temesse perder algum bocadinho da realidade com que conviveu durante
82 anos. A sua arte poética
(que este palavrão me seja perdoado, Manuel) regia-se por coisas
simples como simples era este homem lá das faldas do Marão. Basta
relembrarmos aqui estes versos da p. 95; As medidas dos meus
versos,/ [...] são pelo coração, pela voz,/ pelo ritmo, pelo ouvir.
// São o respirar, o sentir / e o exprimir,[... É muito curioso que
Manuel Amaral tenha transformado todos estes verbos em substantivos.
É que ele era um homem das coisas essenciais (substantivas) embora
uma primeira leitura nos pudesse induzir em erro pelo tamanho de
alguns poemas que poderiam ter sido transformados em quatro ou
cinco. Poderiam, mas ele quis assim e porventura não lhe faltavam
razões. É que deste modo ficavam bem assinaladas as ligações, o tudo
ter a ver com tudo. Os seus órgãos dos sentidos estavam sempre
alerta, mau grado as deficiências da visão e da audição, que ele
compensava com uma grande atenção a tudo e a todos. Os dois poemas em
forma de carta ao vizinho Cândido são a este respeito
paradigmáticos: o espanto perante
aquilo que no estrangeiro é diferente do português, o detalhe que
põe em tudo, as próprias armadilhas da língua francesa a um ouvido
pouco afeito, de tudo Manuel dá conta para que o vizinho Cândido
possa de algum modo partilhar com ele um certo mundo algo
diferente. Que dizer dos
muitos poemas em que fala de modo mais directo ou menos directo de
Teixeira de Pascoaes? É a homenagem de alguém que desde menino
sempre reverenciou esse ex-libris de Amarante e que se habituou a
visitar o velho vate na sua casa de Gatão. Os poemas não
estão datados, infelizmente, o que nos dificulta alguma compreensão
em termos de evolução da escrita do Manuel Amaral mas é nossa
convicção (convicção, nada mais) que os seus poemas tenderiam agora
para uma maior contenção como se não houvesse tempo a perder e se
pudessem exprimir ideias e sentimentos com menos palavras. Estarei
errado? Vem isto a propósito de alguns dos últimos poemas,
nomeadamente desse belíssimo poema da p. 105, A Hora de Ficar.
Acho-o tão belo, do melhor que o Manuel escreveu, que não resisto a
transcrevê-lo: Há um livro que
espera Não leio, não, nem
provo,
O Manuel partiu. Ficámos todos mais
pobres mas a sua vontade de viver era tanta que nos deixou (p. 106)
estas palavras de esperança, palavras de alguém que ainda não tinha
deixado de acreditar na humanidade: Deixa germinar as sementes, /
deixa crescer os pampos, / abrir as pétalas, / fecundar os frutos /
no esplendor desta manhã. Aqui fica a promessa: vamos tentar,
Manuel, vamos tentar. Até sempre! Luís Serrano,
Aveiro, 24-01-04. |