2014-11-24, terça-feira, 18h30: Apresentação pelo jornalista Alfredo Maia da 2ª edição do livro
"O 25 DE NOVEMBRO A NORTE - O PROCESSO REVOLUCIONÁRIO NO ANO DE 1975", de Jorge Sarabando
APRESENTAÇÃO da 2a edição de
"O 25 de Novembro a norte - o processo revolucionário no ano de 1975"
de Jorge Sarabando
As minhas primeiras palavras são para responder a uma pergunta que se adivinha em potenciais
leitores - porquê mais um livro sobre um tema que inspira um sem número de edições? E sobre
o qual, dirseia haver um discurso hegemónico - a de que houve uma deriva totalitária de
esquerda que pôs em perigo a liberdade alcançada no 25 de Abril, mas que tudo acabou em
bem, graças ao 25 de Novembro?
Começo por dizer que a História não é neutra, o discurso dominante é o da classe dominante, e
não é preciso ser marxista para o admitir. Assim sendo, o que hoje vos é apresentado é um
singelo contributo para disputar a verdade histórica aos que têm tido o poder, os recursos e as
tribunas para procurar impor a sua. Não o conseguiram por inteiro. Porque a memória histórica é
inconfinável, pelo menos enquanto estiverem vivos aqueles que não foram cidadãos passivos e
agiram no seu tempo. E é seu dever, ou pelo menos sua faculdade, levantar a voz e dar
testemunho, porque a memória é uma base essencial para interpelar o nosso tempo e assim
preparar o futuro.
Digamos então, para começar: o processo revolucionário foi um tempo de construção. Durou de
Abril de 74 a Abril de 76, data em que foi promulgada a Constituição da República. O processo
designado de "recuperação capitalista" iniciouse com o 1o Governo Constitucional, e estruturou-
se a partir da Revisão Constitucional de 1989. O que foi erguido nesses dois anos há trinta e
nove vem sendo metodicamente demolido. O que então foi conquistado, palmo a palmo, luta e
luta, foi defendido. Em 25 de Novembro se consumou o fim da aliança PovoMFA, objectivo
friamente concebido, e executado sem olhar a meios, pela Direita nacional ou em representação
da ingerência externa.
As grandes conquistas de Abril, que foram legisladas e em parte ainda permanecem, não foram
elaboradas por um grupo de peritos, a partir de qualquer Gabinete do Terreiro do Paço.
Nasceram da luta popular e das necessidades objectivas do desenvolvimento.
Outra razão está na origem deste livro: a de prestar homenagem aos militares de Abril. Aos que
fizeram o 25 de Abril, aos que tudo arriscaram em sua defesa, aos que honraram os seus
compromissos, aos que cumpriram o Programa apresentado aos portugueses e asseguraram as
condições para que uma Assembleia Constituinte livremente eleita concluísse os seus trabalhos.
Entre todos, e destacando apenas três de entre os que já partiram, aqui recordo os seus nomes.
O General Vasco Gonçalves, Primeiro - ministro entre Julho de 74 e Setembro de 75.Poucas
vezes na nossa história de muitos séculos, o povo português teve na mais alta esfera do poder
político um responsável tão profunda e autenticamente identificado com os seus justos anseios e
aspirações. Os Governos a que presidiu suportaram golpes, conspirações, a sabotagem
económica, a violência terrorista, a pressão externa, mas foi por sua acção que foram
melhoradas as condições de vida de quem trabalha, se inscreveram na lei fundamentais direitos
que ainda hoje perduram, se consolidou a democracia, se impulsionou a descolonização nas
trágicas condições deixadas pela Ditadura, e se alcançaram importantes conquistas que vieram a
ser adoptadas na Constituição.
O General Francisco da Costa Gomes, Chefe do EstadoMaior General das Forças Armadas
durante todo o período revolucionário, Presidente da República de Outubro de 74 a Julho de 76.
A sua acção foi determinante para defender Abril, para cumprir e fazer cumprir o Programa do
MFA, para que a direita revanchista e saudosista não atingisse os seus fins, para evitar, à beira
do abismo, um conflito de maiores proporções, e para que a Constituição entrasse em vigor,
promulgandoa no momento seguinte à sua aprovação pela Assembleia. O bastão de Marechal
foilhe entregue numa sessão memorável por camaradas seus do MFA.
Salgueiro Maia, porque bem simboliza a pureza, a generosidade, a valentia, do Movimento dos
Capitães no seu impulso inicial. A direita não lhe perdoou e acabou a sua carreira no posto de
tenentecoronel.
Os militares de Abril não tiveram ainda a homenagem que o País lhes deve.
Quem as vai tendo são personagens saídas das alfurjas e traquibérnias do lado mais negro do
25 de Novembro, como são os casos do Cónego Melo, com estátua em Braga, e de Pires
Veloso, agora com busto no Porto, este inaugurado com pompa e circunstância, com direito a
discurso do Ministro da Defesa Aguiar Branco e do actual Presidente da Câmara.
A História não é neutra, é certo, mas não podemos ficar indiferentes perante a mentira que se
repete, e à força de se repetir se traveste em verdade, transmudando os obreiros, militares e
civis, que ergueram a Revolução de Abril, operaram e defenderam as suas conquistas, em réus
da História.
Vejamos algumas linhas do discurso dominante:
Primeira: a esquerda, designadamente o PCP, tentou instaurar em Portugal uma ditadura.
Mas quem tentou, logo de início, condicionar as liberdades, impedir a libertação de todos os
presos políticos, cercear a liberdade de imprensa, limitar os Partidos a simples associações,
manter a Polícia política, impedir a descolonização, foi o General Spínola, vivia a Revolução as
suas primeiras horas. Só não o conseguiu porque o MFA não se dissolveu e manteve força
militar, e porque o que aconteceu não foi um Golpe de Estado, como um render da guarda no
alto comando do poder político, como as elites do Regime pretendiam, mas uma genuína
Revolução popular, que tinha como grandes objectivos a liberdade, a democracia, a justiça
social, o fim da guerra colonial.
Foi Spínola quem, numa pulsão caudilhista, quis, no quadro do chamado Golpe Palma Carlos, a
marcação de eleições, não previstas, para Outubro de 74, em que se faria eleger Presidente da
República. Repetia, assim, um modelo recorrente da Direita, sempre a exautorar a política e os
políticos, para incensar alguns e depois escolher um deles como homem providencial. Assim
aconteceu com Sidónio Pais, que se fez eleger Presidente da República, sem opositores, em
Maio de 1918, cinco meses depois do sangrento Golpe que chefiou. Assim aconteceu com
Carmona, feito eleger Presidente da República, também sem opositores, algum tempo depois do
28 de Maio, em Março de 1928.
Realizar eleições para uma Assembleia Constituinte era um firme compromisso do MFA. Foram
marcadas para Abril de 75. Não foi o PCP, o MDP e outros Partidos de esquerda que se
opuseram à realização das eleições, embora não estivesse garantido o exercício das liberdades
democráticas em vastas zonas do País, e muitos dos seus militantes, como era o caso flagrante
dos Açores, e outras regiões do norte e centro, fossem perseguidos, agredidos e mesmo
expulsos das suas terras.
Foi a Direita que sempre tentou golpear o projecto constitucional.
Lembrese a proposta apresentada por Palma Carlos, com respaldo de Spínola e Sá Carneiro,
rejeitada pelo próprio Governo e pelo Conselho de Estado - referendar uma lei constitucional
provisória até Outubro de 74, e adiar as eleições constituintes até Novembro de 76.
Lembrese o que Spínola defendia na Proclamação que não chegou a ler ao País na sequência
do Golpe de 11 de Março: anulava as eleições constituintes já marcadas, transformandoas num
Referendo, a realizar em Novembro, sobre projectos constitucionais elaborados pelos "Partidos
autorizados".
Vejase o que determinava a proposta de Lei, redigida pelo deputado Jorge Miranda, por
incumbência, segundo Freitas do Amaral, do PS e do PPD, e que deveria ser aprovada pela
Assembleia Constituinte, no quadro da sua eventual transferência para o Porto, nas vésperas do
25 de Novembro: " a Assembleia Constituinte assume a plenitude dos poderes legislativos e de
fiscalização do Poder Executivo em Portugal e passa a eleger o Primeiroministro". O caminho
não chegou a ser utilizado, como sabemos, mas estava já aberto e pronto.
Fica a saberse, por estes exemplos factuais e comprováveis, que não foi a esquerda que tentou
golpear os compromissos democráticos assumidos pelo MFA, foi sempre a Direita, com fórmulas
adaptadas às circunstâncias, com diferentes actores e máscaras diversas.
Uma segunda linha: houve em Portugal, a partir das eleições constituintes duas dinâmicas, uma
eleitoral e outra revolucionária, e foi a primeira que se impôs.
O então Presidente do CDS declarou mesmo haver uma maioria democrática na Assembleia
Constituinte, somando ele os deputados do PS, PPD e CDS. Era, deste ponto de vista uma
maioria avassaladora de 213 deputados contra 36, se somarmos os do PCP, MDP e UDP. Mas a
maioria que efectivamente funcionou não foi essa foi outra. Foi a dos deputados do PS, PPD,
PCP, MDP e UDP, que votaram a favor da Constituição, enquanto o CDS votou contra.
E aqui encontramos uma das mais prodigiosas singularidades do processo revolucionário
português. Enquanto nas ruas se desenrolava uma cruzada anticomunista, com o PS à frente, a
acobertar toda a direita, enquanto se revelava a violência organizada dos saudosos do Império e
da velha ordem, dispostos a tudo, enquanto os países aliados da NATO exerciam as suas
pressões económicas e militares, a Constituição foi sendo escrita, e a Lei finalmente aprovada
tornouse a mais avançada da Europa.
Para este desiderato foram decisivos a luta poderosa e multifacetada dos trabalhadores, as
conquistas que alcançou e foram sendo inscritas na lei, o apoio do MFA apesar das suas
divisões, a acção dos Governos Provisórios, sobretudo dos presididos por Vasco Gonçalves, luta
que continuou para além do 25 de Novembro. Foi essa luta que não deixou margem aos dois
Partidos mais representados para fazerem dentro da Assembleia o contrário do que
proclamavam cá fora, ao defenderem o socialismo.
Será por isso mais acertado dizer que além de um confronto entre duas dinâmicas, a
revolucionária e a eleitoral, que aconteceu, de facto, numa iniludível tensão dialética, o que mais
contou foi a dinâmica da luta popular de massas, de uma dimensão nunca antes vista, e que não
viria mais a repetirse com tal expressão e em tão larga escala.
Uma terceira linha sustenta ter existido um Poder dual: de um lado "os militares que fizeram um
Golpe de Estado" e do outro o Povo, que foi quem impulsionou a Revolução e viria a ser traído
pelos aparelhos partidários burgueses ou reformistas.
Esta visão, um tanto idealizada, tende a empolar certos factos isolados e atípicos, como o caso
de um "julgamento popular" que absolveu um trabalhador acusado de matar o patrão, ou a
ocupação da herdade da Torre Bela, como caracterizadores de uma época.
Vale a pena, por isso, decompor esta dualidade argumentativa.
Primeiro - "Golpe de Estado" teria havido se o 25 de Abril se limitasse à transmissão de poderes
de Caetano a Spínola. O que houve, sim, foi um levantamento militar seguido de um
levantamento popular, e a instituição de órgãos revolucionários colegiais, com um Programa e
uma missão claramente definida, e que recebeu o apoio de milhões de portugueses que se
manifestaram no primeiro 1o de Maio em liberdade. As diferenças e contradições entre os
militares responsáveis eram patentes e fazem parte da História - até Março de 75 entre o grupo
spinolista e o MFA, depois de Maio entre as três correntes em que se dividiu o MFA. Falar de um
poder militar unívoco é tão redutor como enganador.
Segundo - o Povo não é uma entidade inorgânica. Os Partidos, os Sindicatos, expandiramse
rapidamente, as Comissões de Moradores multiplicaramse ( só na cidade do Porto formaramse
73), assim como as Comissões de Trabalhadores e Sindicais. A onda de participação popular
não se movia ao acaso, por impulso de ocasião ou geração espontânea. A Reforma Agrária não
aconteceu de modo caótico mas de forma organizada, tendo sido criadas 550 Unidades
Colectivas e postos a produzir 1milhão e 140 mil hectares de terras, antes abandonadas ou sub-
aproveitadas. No final do período revolucionário havia 253 empresas nacionalizadas e, em
norma, competentemente geridas; havia centenas de empresas intervencionadas, salvas pelos
trabalhadores com a colaboração do Governo, que tinham sido abandonadas ou descapitalizadas
pelos antigos donos; havia cerca de 1000 cooperativas e 890 empresas em autogestão. Era este
o povo actuante, criador, participativo, que transformava e que abria caminho para uma
sociedade mais justa.
No entanto, certa vulgata esquerdista parecia só ver o "povo" na barafunda, ou nos boicotes ao
Congresso do CDS, no Porto, ou a um comício do PPD, em Setúbal, actos provocatórios que tão
bem serviam os cenários ficcionados pela direita de "terra queimada", indisciplina no trabalho,
desordem nas ruas, e a liberdade em perigo, e que tanto lhe convinham.
Há textos sem conta que falseiam a verdade histórica: empolam os excessos da Revolução e dos
revolucionários mas, ao mesmo tempo, omitem ou desvalorizam os actos da violência terrorista
planeada, financiada, organizada e executada pela Direita nacional, com apoio externo.
Por esta via chegamos a uma quarta linha: a do suposto levantamento popular contra a
Revolução e os comunistas.
Recordemos que o 25 de Abril acontece cerca de um ano e meio depois do sangrento golpe
fascista de Pinochet na Pátria de Neruda e de Salvador Allende. Por isso uma das consignas
mais gritadas nas multitudinárias manifestações do outono da Revolução era "Portugal não será
o Chile da Europa". Terá sido esse perigo real, que este livro procura abordar, que levou ao
surgimento dos SUV, no Porto, que duraram apenas três meses mas tiveram uma adesão
fulgurante de milhares de praças e de oficiais e sargentos milicianos, que desfilavam fardados
nas enormes acções de massas que antecederam a jornada trágica de Novembro.
O golpe no Chile seguiu o guião das "operação Condor", de concepção norteamericana e que
instaurou ditaduras tenebrosas como aconteceu no Brasil, na Argentina, no Uruguai, entre outros
países da América Latina.
Quando chegou a Portugal, o novo embaixador dos Estados Unidos, Frank Carlucci, trazia larga
folha de serviços e experiência em diferentes teatros de operações. Apenas teve de aperfeiçoar o
programa já em curso, adaptálo às circunstâncias, às forças em presença e ao perfil dos actores
no terreno. Eram suas componentes essenciais:
captar apoios militares;
dividir a vanguarda militar o MFA, e o movimento popular;
impedir a coordenação dos centros de decisão;
promover a sabotagem económica e a fuga de capitais;
utilizar a chantagem económica e militar internacional;
financiar organizações partidárias, patronais e sindicais divisionistas;
controlar a comunicação social;
incentivar a instabilidade e o descrédito das instituições no quadro de uma escalada de
insegurança e tensão.
Em pano de fundo, a defesa da liberdade, supostamente ameaçada.
Nada de novo que já não houvesse sido experimentado, com êxito, em outros países, mas agora
com outras exigências, dada a situação estratégica do País e a descolonização em curso,
sobretudo de Angola, com as suas riquezas incomensuráveis.
Foi este o guião seguido, para o qual havia planos de contingência, no momento crítico de
Novembro, que não chegaram a ser accionados.
No plano táctico, tornavase prioritária a destituição do Primeiroministro Vasco Gonçalves e o
acantonamento político, numa primeira fase, do Partido Comunista e de outros Partidos de
esquerda.
O que aconteceu em Portugal, no "verão quente", não foi um levantamento popular contra o
Partido Comunista e as forças revolucionárias. Foi uma acção terrorista dirigida pelo ELP, MDLP,
rede Maria da Fonte e organizações congéneres, com largos financiamentos externos, apoios
logísticos, recrutamento massivo de antigos pides e legionários, de náufragos do aparelho de
Estado fascista, parte dos colonos inconformados e desesperados, mercenários convictos, gente
manipulada, algum lumpen, que sempre desponta nestas ocasiões.
No total, entre o primeiro acto da rede terrorista, em Maio de 75, e o último, em Abril de 77,
registaramse 566 acções criminosas, assim discriminadas:
310 atentados bombistas
136 assaltos
58 incêndios
36 espancamentos
16 atentados a tiro
10 apedrejamentos
Cerca de metade ocorreram nos primeiros seis meses, com particular incidência nos distritos do
norte e centro, sendo o do Porto o mais fustigado com 103 destas acções.
Apesar dos esforços da Polícia Judiciária, poucos foram os presos e menos os condenados, e
alguns dos autores morais e materiais foram ainda agraciados ou distinguidos pelo poder político
militar emergente.
Não, não era o povo que atirava bombas sobre moradias e carros particulares, escolhidos a
dedo, incendiava sedes de sindicatos e partidos de esquerda, saqueava residências de activistas
sindicais, de advogados, de médicos, de comerciantes, suspeitos de simpatia pelos comunistas,
ou pintava cruzes nas casas como marca de destruição, como os nazis faziam com a estrela a
assinalar as lojas e as casas onde viviam judeus. O povo não era o autocarro do denominado "
Exército de Libertação de Fermentelos", que andava de terra em terra no distrito de Aveiro a
destruir sedes de sindicatos e partidos, ou a expulsar das Câmaras Municipais vereações onde
houvesse autarcas de esquerda. Conseguiam ou não, mas sempre intimidavam.
De agressão em agressão, de assalto em assalto, de petardo em petardo, repetemse as caras,
repetemse os nomes. As primeiras prisões, efectuadas pela Directoria do Porto da Polícia
Judiciária são de Agosto de 76, mas, apesar dos esforços realizados, foram poucos os presos e
menos os condenados. Um dos detidos de então declarou, como se transcreve no livro que vos é
presente, ter participado nos assaltos às sedes no Porto do MDP e da UDP, na manifestação
contra o RASP ocupado, e numa série de atentados bombistas que causaram vítimas mortais.
Era este o "povo" que se levantava, em nome da liberdade, contra aqueles que acusavam de
querer instalar uma ditadura em Portugal.
Não confundimos tal gente, claro, com aquela parte da população que se manifestava
pacificamente, como era seu legítimo direito, contra o rumo socialista da Revolução.
Sobre o 25 de Novembro apenas duas notas:
a primeira, para lembrar e homenagear o Coronel Eurico Corvacho, que, graduado em
Brigadeiro, foi Comandante da Região Militar Norte em parte do ano de 75. Um dos mais
destacados capitães de Abril no Norte, Corvacho tinha a simpatia e o apoio de grande parte do
povo do Porto. Em Agosto, alvo de acusações que punham em causa a sua isenção e honra,
suspendeu as funções e pediu um inquérito ao Conselho da Revolução, que foi realizado pelo
Brigadeiro Agostinho Ferreira. Foi ilibado das acusações e reconduzido no Comando. Mas vários
Comandantes de Unidades insubordinaramse e colocaramse sob a autoridade do Comandante
da Região Militar Centro. Acabou por ser destituído do Comando da Região e do Conselho da
Revolução, no quadro do Pronunciamento de Tancos. A oficialidade conservadora, que se movia
na sombra desde as primeiras prisões do ELP, não atingiria os seus fins sem a ajuda, que foi
decisiva, de outros militares do campo democrático, pertencentes ao Grupo dos Nove. Os oficiais
insubordinados nunca foram punidos.
Vale a pena recordar as primeiras decisões do substituto, Brigadeiro Pires Veloso: afastar os
oficiais da 2a Repartição do QG, activos no combate ao ELP e ao MDLP; extinguir de surpresa o
CICAP, o que deu origem à ocupação do RASP, que durou dez dias e só terminou com a
intervenção do CEME, General Fabião; entregar 400 espingardas G3 à PSP, comandada pelo
seu amigo, Major Mota Freitas, que viria a ser preso por ligações à rede bombista; criar uma "
Comissão de economia", no QG, que prontamente reclamou o descongelamento de 53 contas
bancárias.
Não é de crer que medidas tão cirúrgicas resultassem de uma iluminação súbita de Pires Veloso.
Vinham já em carteira. É oportuno lembrar que o seu nome era um dos quatro escolhidos pelos
oficiais insubordinados.
lembrando que a Assembleia Constituinte esteve para mudar para o Porto, com novos e
reforçados poderes, e que, segundo declarações publicadas, estavam preparados grupos
"prontos para executar quem quer que fosse", uma segunda nota para referir o 25 de Novembro
e o seu significado. Por mais que o discurso dominante tente incriminar a esquerda, os planos
conhecidos, realizados uns, ficando por realizar outros, que seriam uma tragédia para o nosso
País, têm a marca e servem os interesses da direita. Sobre a intervenção do Partido mais visado,
o PCP, a obra de Álvaro Cunhal "A verdade e a mentira na Revolução de Abril - a contra-
revolução confessase" é elucidativa e concludente, e talvez por isso tem sido ignorada e omitida
por grande parte dos autores.
Será por isso útil, para reconhecimento da verdade, citar os parágrafos finais de uma "informação
reservada aos militantes, assinada pelo Secretariado do CC do PCP", datada de 1 de Setembro
de 1975:
"É...indispensável procurar a negociação, adiantar a possibilidade de uma solução de
compromisso, deslocando forças do campo adverso, diminuindo a tensão militar, desarticulando
a conspiração e cortando o passo a um golpe de direita e à guerra civil.
Ao mesmo tempo, todo o trabalho revolucionário tem de desenvolverse, pois só o reforço da
organização e da acção revolucionária popular e militar podem assegurar a defesa da liberdade,
a construção dum regime democrático e o prosseguimento do caminho para o socialismo".
A luta CicapRasp e as enormes e vibrantes manifestações de apoio que desfilaram, em Outubro
e Novembro, pelas ruas do Porto, de civis e de militares fardados, demonstraram que um golpe
"à chilena" teria de enfrentar uma forte e imprevisível resistência.
Apesar de todas as convulsões, enfrentando os poderosos meios mobilizados pela direita e a
ingerência externa, a Revolução seguiu o seu curso: importantes conquistas laborais foram
alcançadas, a economia continuou a funcionar apesar de todos os boicotes, os trabalhadores e o
Estado asseguraram a sobrevivência das empresas sabotadas ou abandonadas, a Banca e os
sectores estratégicos foram nacionalizados com um amplo consenso, criaramse as condições de
acesso generalizado à Saúde, à Educação, à Justiça, à Segurança Social, à Cultura, a uma
habitação digna, instituiuse o salário mínimo, realizouse a Reforma Agrária, instituiuse o
controlo operário, lançaramse os alicerces do Poder Local Democrático, as condições de vida
melhoraram, criouse mais emprego e emprego com direitos.
Chegaram, num curto período de tempo, mais de meio milhão de portugueses, vindos das
antigas colónias, sobretudo de Angola, tendo neste caso sido necessário organizar uma ponte
aérea, e todos foram sendo integrados.
Apesar de tudo isto a taxa de desemprego era, no final de 75, de 4%.
Como nos lembra Vasco Gonçalves, uma missão da OCDE, composta por três membros do MIT,
visitou Portugal nessa ocasião e considerou a "economia portuguesa surpreendentemente
saudável" e o seu "desempenho extremamente robusto", tendo em conta a crise internacional e
as transformações internas.
Havia um rumo, um projecto colectivo, original, sem dúvida, mas consistente.
Estavam criadas as condições para serem as instituições do Estado português a definirem uma
estratégia de desenvolvimento, de acordo com os interesses nacionais.
Cumpriase por inteiro o princípio constitucional da "subordinação do poder económico ao poder
político democrático". (art.80o alínea a)).
Sabemos o que aconteceu nestes últimos 39 anos, através do rotativismo de três Partidos que se
têm revezado no Poder: a reconstituição do grande capital financeiro e dos seus instrumentos, a
perda de direitos laborais, as privatizações, muitas de recorte criminoso, o ataque às funções
sociais do Estado, o empobrecimento do País, aumento da exclusão social,, o regresso das
desigualdades afrontosas, as ofensas à liberdade, os condicionamentos da soberania.
Mas também sabemos que a História não acabou. Os valores de Abril continuam bem vivos.
A Constituição, apesar das alterações na parte económica e social, impostas pela Revisão de 89,
continua de pé e a sua defesa é um imperativo de todos os democratas. A Direita, como
expressão política e doutrinária dos interesses do grande capital, hoje na fase neoliberal, não
desiste da sua revisão, " a bem ou a mal", como dizia há poucos meses uma luminária ao serviço
dos poderosos. É neste ponto que estamos.
A Revolução portuguesa foi tão longe quanto possível na construção de uma democracia a
caminho do socialismo, a contrarevolução foi tão longe quanto possível nos labirintos de
Novembro e no tempo seguinte.
Uma reflexão hoje se impõe, quarenta anos depois dos confrontos que dividiram o nosso País.
Com os fascistas não pode haver condescendência, nem aproveitamentos calculistas, nem
tratos, nem acordos por cima da mesa ou debaixo da mesa. Por maiores que sejam as
divergências entre os que defendem a democracia há uma fronteira que os separa do fascismo,
porque o fascismo significa a negação da liberdade, a exploração sem limite do trabalho, o
desprezo pela vida humana e pela dignidade, em nome de um poder absoluto.
Há quarenta anos essa fronteira foi transposta por alguns democratas, num aliança espúria,
ainda que conjuntural.
O fascismo está de regresso na Europa, com máscaras diversas. São os mesmos que, ainda
recentemente, fecharam e queimaram vivas dezenas de pessoas na Casa de Sindicatos em
Odessa, ou que atiram engenhos incendiários para cima de residências e acampamentos de
refugiados sírios e de outros Países, vítimas inocentes de guerras armadas pelo império e seus
aliados.
É pelos caminhos de Abril que vamos, pois só com eles teremos um futuro de liberdade,
progresso e justiça social.