2024-05-22, quarta-feira, 21h30:
Apresentação, por Rui Pereira, de "Breve História de Portugal
- A Era Contemporânea (1807-2020)", de RAQUEL VARELA e Roberto della Santa


Vídeos da apresentação:

«Raquel Varela (historiadora) e Roberto della Santa (cientista social) repõem duzentos anos da luta de classes em Portugal no seu devido lugar. Na melhor tradição da "história a partir de baixo", o seu registo abrange desde o início da organização dos trabalhadores, nos primeiros anos do século XIX, até à resistência atual à devastação neoliberal. No centro desta história está o momento em que, com a queda da "mais longa ditadura", no Portugal de Abril de 1974, pela primeira vez, desde a Espanha de 1936, uma revolução vitoriosa dos trabalhadores surgiu como uma possibilidade real na Europa Ocidental. Quando se comemoram os 50 anos da Revolução dos Cravos, as lições destes grandes acontecimentos e a posterior derrota dos trabalhadores reverberam nas páginas deste livro. Como nos relembram os autores, nunca antes foi tão verdadeiro que "é preciso conhecer a própria história para ser parte dela enquanto sujeitos".» Andy Durgan, historiador, autor de The Spanish Civil War (2007), Comunismo, Revolución y Movimiento Obrero en Cataluña (2016) e Voluntarios por la Revolución (2022).
























DA UTILIDADE DA CRÍTICA PARA A VIDA E PARA A HISTÓRIA

Texto da apresentação por Rui Pereira

Sobre a obra Breve História de Portugal - A Era contemporânea (1807-2020) de Raquel Varela e Roberto Della Santa (2023). Bertrand.

Porto, UNICEPE 22-05-2024

Desde que recebi da Raquel Varela e do Roberto Della Santa o convite para apresentar no Porto esta obra, em novembro do ano passado, o livro tem-se cumprido como é seu mister. Falando, fazendo pensar, fazendo falar. Seguindo a viagem da obra e dos autores por sessões e sessões de apresentação, percebe-se esse “envio” para os outros e dos outros que é o labor da escrita que, uma vez feita, torna a fazer-se, no que dá a pensar e a fazer.

Noutra viagem, dizíamos recentemente numa conversa com Raquel e com Roberto, de cada vez que a esta sua obra tenho voltado, é para descobrir novos elementos de reflexão, coisas novas que escaparam na primeira leitura, caminhos que se abrem e dos quais ou de cuja fecundidade me não tinha dado conta. Tal é a primeira marca da qualidade de um trabalho. Renova-se à medida que sobre ele passam o tempo e os olhos. Assim sucede com esta “Breve História…” de nós.

Se chamamos, de um modo simples -embora não simplista- ao fenómeno da consciência essa classe de notícia que vamos tendo de nós mesmos e do nosso lugar entre as coisas e as gentes, essa notícia de nós no mundo, este livro representa um formidável deslocamento, para muito de nós, dessa mesma consciência. Com efeito, o trabalho de desmistificação do que numa linguagem marxiana chamaríamos aqui a “falsa consciência”, percorre, em fundo, cada uma destas páginas. Não no sentido ingenuamente caricatural dos velhos “educadores da classe operária”, mas, pelo modo como o passado, olhado por novos prismas, nos fala de nós, então como hoje, de modos inteiramente novos também.

Situo, pois, antes de mais, esta obra no terreno de uma historiografia crítica, no terreno árido, difícil e crescentemente perigoso da desmistificação. A primeira operação desmistificadora que ela realiza face à historiografia de loja de conveniência que predomina no sistema de ensino e em largas franjas do mainstream historiográfico, é que se trata de um livro de história contemporânea que parte da existência de um conflito entre trabalho e capital. É fácil de ver a sua perigosidade para o velado neocorporativismo vigente que ensina desde os bancos de escola essa quintessência pátria que consistiria em estarmos todos do mesmo lado, a remar no mesmo sentido para engrandecer o país…

Referi-o na primeira apresentação, e ao assunto volto nesta ocasião, como nesta obra encontramos termos e respetiva conceptualização como “luta de classes, burguesia, trabalhadores, operariado, proletários, sobre-exploração, colonialismo, nova escuridão digital, revolução política e revolução social, acumulação primitiva de capital, mais-valia relativa e absoluta, o trabalho como sede de sofrimento material e psíquico” … E propus então, como volto agora a propor, que reflitamos comparativamente sobre os termos alternativos que poderíamos encontrar em vez destes e que são os termos pelos quais o nosso presente dominante gosta de se dizer: “empresa, empreendedorismo, inovação tecnológica, ligação da escola ao mercado, democracias liberais, colaboradores, concertação, unidade europeia, sustentabilidade, transição verde, transição digital, resiliência social, unidade nacional, projectos mobilizadores, interesse nacional, estabilidade das instituições, respeito pela hierarquia do Estado, altos responsáveis políticos e governamentais, integração europeia (que o texto de Raquel Varela e Roberto Della Santa trata e com precisão por uma situação em “Protetorado de facto (p. 24)” em que nos encontramos, e, enfim, tanto outro entulho intelectual, como John Dewey chamava a esta logomaquia de rico potencial de empobrecimento intelectual e de ilegibilidade das consciências, de que é feito o bombardeamento psitacístico quotidiano que nos toma e de que é feito o reacionarismo historiográfico que vai das salas de aulas aos estúdios de televisão e de rádio. Com maior brevidade, acentuarei outro desmentido, factual, deste nosso passado recente que tem a ver com a desconstrução do mito do povo e do país dos “brandos costumes”. Lendo esta obra percebemos que nem na opressão nem na resistência o fomos ou o somos. Nestes poucos mais de 200 anos que desfilam pelas 500 páginas do texto evoca-se a crueldade da repressão monárquica de absolutistas e liberais, desmistificam-se as infindas bondades da rápida viragem repressiva da I República (demagogicamente associada ao 25 de abril no revisionismo celebrativo oficial), desmistifica-se a virtualização de um Estado Novo e de um colonialismo, apesar de tudo benévolos, se comparados com os seus homólogos. Como se desarmam as modalidades e os combates tantas e tantas vezes violentos da resistência a tudo isto pelo povo e pelos trabalhadores, seja o operariado urbano, seja o campesinato, os pescadores, as mulheres, os estudantes. Afinal, a História de Portugal, incluída a mais recente é igual à do resto do mundo, tão feita de violência quanto qualquer outra.

Violência, mas, de novo um desmentido da ordem da factualidade, solidariedade também. Numerosas, surpreendentemente numerosas pela sua quantidade e qualidade, são as greves solidárias, espontâneas, alastradas de uns a outros em nome dos outros e dos uns, na história do trabalho em Portugal. Quem nos vir no que hoje parecemos, tem dificuldade em reconhecer- nos no que ontem fomos. Que é como quem diz, afinal, se isto somos hoje, veja-se em que podemos tornar-nos de novo amanhã. O que é bem diferente.

Documentalmente, o laborioso detalhe com que a obra é elaborada pode medir-se por indicadores tão reveladores quanto estes: as notas estendem-se por 44 páginas e as referências bibliográficas por outras 29 páginas. É feito de obras anteriores e de um longo e constante trabalho de pesquisa dos seus autores. E é feito, como constatará quem ler, de uma profundíssima erudição, posta ao serviço de uma explicação formalmente acessível ao leitor, mesmo nas operações intelectuais e epistémicas mais difíceis, onde se demonstra o permanente entrecruzamento entre passado e presente, tessitura de onde espreitamos o futuro e de onde somos por ele entrevistos. Um exemplo disso é o modo como se demonstra a complexa multicausalidade de fenómenos que se reactualizam no tempo sob outras formas, mas de idêntico conteúdo. Exemplifico com uma passagem em que a páginas 24-25, é lançada a interrogação: “Em 1849, realizou-se no país a primeira greve moderna da História de Portugal contra o trabalho noturno. Em 170 anos o trabalho noturno generalizou-se e hoje a laboração contínua 24 horas sobre sete dias está disseminada. O que há de comum e de diferente entre a sirene da fábrica conserveira de Setúbal, no final do século XIX e as incessantes notificações laborais -no computador e telemóvel- hoje? O salário à peça nos sapateiros e os ‘recibos verdes’ de hoje? Os antigos capatazes e a vigilância com o sistema biométrico, picar o ponto, controlando horários ao minuto?”.

De uma assentada permito-me tomar um par de parágrafos da página 363, para sublinhar outra operação metodológica que é a inserção permanente da história portuguesa em movimentos e feixes de sentido internacionais mais vastos, por um lado, rejeitando epistemicamente o “nacionalismo metodológico”. De que exemplifico, entre muitas outras possíveis, a passagem em que se explica os fatores de durabilidade da ditadura no século XX, quando os autores escrevem que “Outra questão fundamental para explicar a durabilidade do regime é que o período do Estado Novo é maior porque se dá num momento em que o poder mundial se desloca da Europa para os EUA. Há um deslocamento do centro do imperialismo europeu para o norte-americano, o que torna o Portugal -que já era periférico- mais periférico ainda”. Isto por um lado. E, por outro lado, destaco a partir da mesmíssima p. 363 entre, de novo, tantas e tantas outras passagens possíveis, um dos aspetos cruciais que tornam tão importante este importante livro da Raquel e do Roberto. Ao sublinharem na p. 363 que “a memória coletiva do que se passou antes do golpe de Estado de 1926 -todo o período histórico de hegemonia do sindicalismo revolucionário- e do velho “espírito de cisão’ do proletariado, parece ter-se desvanecido”. Lemos aqui esta noite, com Raquel Varela, esta obra monumental. Num momento em que abril fez 50 anos. Dias nos quais, pegando na segunda Intempestiva de Nietzsche, bem claro fica a Utilidade da História para a Vida. Pela primeira vez em décadas, duas gerações de jovens portugueses puderam aproximar-se das imagens, dos sons, da inspiradora e controversa respiração daquilo que para eles lhes fora até aqui -e porventura daqui em diante assim voltará a ser- apresentado como, pouco mais que mais uma data no calendário, o dia 25 de abril de 1974 e os dias e noites que se lhe seguiram. Os media, as televisões, as universidades, escolas e redes digitais, os gentios pegaram nas suas memórias, nas imagens que colheram e que jaziam nos arquivos, nos sons, nas testemunhas e nos testemunhos, nos seus atores e espectadores, e ocuparam a agenda pública. Por experiência própria, pude constatar a dimensão da curiosidade dos mais jovens (e não só) pelo tão intencionalmente ignorado desvanecimento do momento fundador do nosso ser colectivo de hoje, produto de décadas de uma tão cuidada organização da desmemória como operador político.

Esta grotesca operação agnotológica, que vem dos mais diversos vencedores de novembro à actualidade, faz-se nalguns casos de ódio, noutros, a maioria, de conveniência, de pura conveniência de serviço. Mas, também se faz de medo e desconfiança das novas oligarquias, perante o frémito que percorreu esse país desperto que, a despeito das divergentes interpretações que sobre ele possam ser feitas, tem realidades factualmente inquestionáveis. Retomo da obra de Raquel Varela e Roberto Della Santa, que temos em mãos, duas passagens poderosamente explicativas dos motivos pelos quais os poderes neo-qualquer coisa que nos tutelam preferem, a respeito de abril e do chamado PREC, mudar de assunto. Na p. 370, quando é citada uma professora em serviço em Alcácer do Sal, Filomena Oliveira a dizer: “tínhamos o país nas mãos, o poder foi-se embora”. E na p. 374, quando se evoca que “a democracia participativa que vigorou e que tinha o seu centro nos locais de trabalho e habitação colocou qualquer coisa como 3 milhões de pessoas a decidir, não por delegação de poderes de quatro em quatro anos, mas dia a dia, como a sociedade devia produzir, ser gerida. Nunca tanta gente decidiu tanto em Portugal como entre 1974 e 1975”.

Por isso é importante a operação geral de apagamento vinda de cima para baixo. E uma historiografia que lute contra a desmemória, de baixo para cima, operação política decisiva em que o passado, ora no primeiro, como no segundo caso, intervém decisivamente -quem sabe?- sobre o presente e abre o futuro. É também por esta importância, pela iconoclastia do derrubamento de mitos identitaristas (da Pátria imortal, como dos ontens que cantam, como dos colonialismos benevolentes dos “desmandos e loucuras” da revolução, como os da prosperidade atual, no país que, como costumo dizer, passou do “em cada esquina um amigo” para o presente do “em cada esquina um mendigo”.

Discutir o indiscutido, pensar o impensado e o impensável, nisso consiste a crítica, é uma rigorosíssima tarefa da filosofia social e das ciências humanas. As inversões conceptuais a que Raquel Varela e Roberto Della Santa procedem nesta obra e no seu trabalho geral de pesquisa, requerem tanto desse rigor quanto de um tipo muito particular de coragem, da qual tão precisados andamos, a coragem moral e intelectual e de futuro, talvez física também. Tudo isso aqui encontramos, resumido num termo tão propositalmente maltratado no discurso público em Portugal: radicalidade. Ir à raiz das coisas. Como Raquel Varela e Roberto Della Santa bem recolhem de Raymond Williams (p. 21), “ser efetivamente radical é tornar a esperança possível e não o desespero convincente”. Como é o caso do livro que aqui nos junta esta noite, eis a grande utilidade que uma historiografia crítica com pés e cabeça pode ter para a vida que temos por viver.



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