Intervenção de Joaquim Murale
Bom dia, queridos amigos.
É sempre um momento feliz voltar à Unicepe e ao vosso convívio, de que
guardo belas e gratas lembranças. Hoje voltamos aqui por uma razão que nos
entristece a todos, celebrar a memória do Padre Mário de Oliveira, um homem
diferente, corajoso, humilde, de mente brilhante, que soube preservar sempre o
riso cândido e espontâneo de menino. Não fora o acidente que o vitimou e ainda
hoje poderíamos contar com a argúcia do seu pensamento. Este homem simples,
clarividente, que me deu a honra de me considerar seu “irmão gémeo nas
grandes causas”, sempre tinha uma visão clara dos factos que influenciavam a
vida e o mundo porque a sua mente era verdadeiramente livre, até das peias que,
tantas vezes, impomos a nós próprios. O Padre Mário não se ajoelhava a altares,
a um partido, a qualquer fonte de poder. Ele pugnava por uma mudança do
mundo disseminando humanização através de algo semelhante a um sistema de
vasos comunicantes, ou seja, dando-nos as mãos num fluxo de fraternidade cada
vez mais amplo. E era irmandade o que a sua palavra espalhava, contra os
poderes – o político, o religioso, o financeiro –, a favor dos pobres, dos fracos,
dos desamparados, sem excluir desse caminho os que, como eu, pensavam de
forma diferente e/ou eram ateus.
Conheci pessoalmente o Padre Mário em casa do nosso editor, amigo e irmão
comum, Jorge Castelo Branco, e, não obstante a distância física que nos
separava, tive a felicidade de partilhar com ele inúmeras iniciativas de carácter
literário e cultural, algumas das quais aqui mesmo, na Unicepe.
Infelizmente, já não poderemos contar com a argúcia do seu pensamento para
fazer luz sobre o tempo insano que vivemos. Um áspero tempo de marionetas
em que políticos eleitos com o voto dos cidadãos aceitam ser, nos seus países,
agentes dos interesses imperialistas. Têm nome e todos os conhecemos. Um
deles condena à morte a juventude do seu povo apenas para que o seu país entre
na NATO, ou melhor, para que a NATO tome conta do seu país. Outros não
hesitam em impor sacrifícios aos seus povos para alimentarem uma guerra que
tão-só visa alargar a globalização ao mundo e colocar nas mãos alemãs o
controlo político sobre a Europa inteira. Vivemos um tempo ignóbil de mentira.
Nunca a manipulação das mentes atingiu a proporção a que se assiste hoje em
dia. Nunca a cegueira foi tão vasta, nem tão vasta a ignorância. Nunca a divisão
entre os fracos foi tão funda. Nunca a insegurança no dia-a-dia foi tão palpável,
nem tão palpável a desesperança no futuro.
A melhor homenagem que poderemos prestar ao Padre Mário de Oliveira, e
certamente aquela que ele mais desejaria, é que o prossigamos, continuando no
futuro a sua luta. E, nessa luta, não seguiremos em frente sem entendermos a
realidade como ela é e não como nos é dada a ver.
No mundo ocidental globalizado, é um erro pensar que a vida dos povos
depende dos resultados eleitorais. Em Portugal, nada de significativo mudou nos
últimos dias. As pessoas são as mesmas. Apenas vai mudando o cenário
consoante as circunstâncias, as decepções e as manipulações. Hoje temos o que
tínhamos há uma semana atrás: as mãos vazias daquela liberdade que pode
mudar os dias porque pode mudar a vida. Essa liberdade, a verdadeira liberdade,
continua arredia, longínqua, nunca a tivemos. O que temos e mantemos é a
mesma capacidade para lutar por ela. Verdadeiramente, foi só isso o que sempre
tivemos porque a vida, em cada momento, será sempre exclusiva consequência
da luta política e social.
Eu gostaria de vos falar de uma mudança significativa que está a acontecer na
sociedade sem que nós tenhamos consciência do seu verdadeiro impacto no
viver colectivo. O mundo caótico em que vivemos está a sofrer as mais rápidas
mudanças da história humana. Tudo o que era seguro ficou precário. Nunca a
própria natureza humana mudou tanto num espaço de tempo tão curto. Em
poucas décadas passámos de uma sociedade neurótica, basicamente
controladora, assente em comportamentos estáveis e rotineiros, fiel a valores de
honra e a sentimentos de remorso, para uma sociedade psicopática, de
indiferença e desapego, constituída maioritariamente por pessoas egocêntricas,
conflituosas, irresponsáveis, imaturas, sem honra, sem culpa e onde as regras
existem apenas para que os outros as cumpram. Quando estamos perante pessoas
para quem o centro do mundo é o seu próprio umbigo, tal significa que nessas
mentes os ideais de fraternidade não colhem eco nem apoio. Isso explica o maior
interesse e a maior atracção dos jovens para com as organizações políticas de
direita, que já é visível nos resultados eleitorais e mais se destacará em futuras
eleições em Portugal e no mundo ocidental, onde o mesmo fenómeno acontece
devido ao mesmo tipo de vivências e partilha da mesma cultura. O
desaparecimento da família tal como a conhecíamos, que era a fonte da
educação e acompanhamento permanente dos filhos até à idade adulta; os cacos
em que se encontra a Escola, com o total desrespeito pela figura do professor; a
precariedade das actuais relações afectivas na adolescência, que se quebram e se
mudam como se muda de roupa, e a ausência de figuras públicas de referência
inspiradoras de condutas dignas e coerentes, ditam o surgimento acelerado desta
nova sociedade visceralmente individualista, infeliz, violenta, manipuladora,
sem afectos e alimentando todo o tipo de dependências. Os ideais humanistas
sofrerão um duro revés neste contexto e as organizações de esquerda serão
severamente esquecidas nos actos eleitorais. Deveras preocupante, também
porque a criminalidade violenta e a conflitualidade geral aumentarão
significativamente.
Isto conduz-nos a outro tema de premente reflexão. No mundo actual, os
cidadãos apenas elegem os títeres que hão-de aplicar no seu país as condições
que têm permitido à globalização avançar. São outros, bem longe de nós, os que
comandam as multinacionais que controlam a economia global, que estão a
traçar o futuro para o mundo. A perda de soberania aconteceu aquando da
adesão à União Europeia e acentuou-se desde a queda do muro de Berlim. Esse
muro simbolizou, aos olhos das populações, a separação entre dois sistemas
políticos. A sua queda simbolizou também a falência do bloco socialista da
Europa de Leste e o fim factual da Revolução de Outubro. Enquanto a esquerda
não entender, assimilar e aprender das causas que levaram à degenerescência
ideológica e consequente derrota do projecto mais fracturante, arrebatador e
brilhante da história da humanidade, que encheu de esperança o coração dos
pobres e desamparados do mundo, não é fácil voltar a atrair os povos para um
caminho que abortou e todos os passos que dermos serão em vão. Lembremo-
nos que foi a queda do muro de Berlim que promoveu a imediata intenção
imperialista de transformar o mundo numa aldeia global. Tudo o que tem
acontecido desde aí tem sido orquestrado, passo a passo, medida a medida, pelo
grupo de Bilderberg e pelas cimeiras do Fórum Económico Mundial em Davos.
A democracia em que vivemos nada mais é do que uma farsa para assegurar que
nos mantemos bem divididos, cada um entrincheirado no seu partido, fiel à sua
ideologia, em estado puro, para que se não cumpram os interesses dos mais
desfavorecidos nem se alcancem os objectivos que, nas sociedades capitalistas,
injustas e desiguais, deveriam unir-nos a quase todos.
Quis o acaso que a partida do Padre Mário coincidisse com o início do conflito
europeu na Ucrânia. Pela primeira vez na História estamos a assistir a algo novo:
a uma guerra não-declarada dos países integrantes da NATO contra a Rússia em
que os aliados são representados por um país terceiro, a Ucrânia. E, a breve
trecho, se esta guerra terminar favoravelmente aos interesses globais, outra
guerra idêntica começará. Será contra a China; os mesmos aliados, a que se
juntarão o Japão, a Coreia do Sul e outros países do extremo oriente,
representados na guerra por Taiwan. Todos nós sabemos que será assim porque
todos estamos a ser testemunhas da montagem do cenário. Destes conflitos
destacam-se a cobardia política do ocidente para assumir a guerra, a concertação
rigorosa de todos os meios de comunicação social, públicos e privados, e a
consequente manipulação, quase diríamos científica, da mente e da opinião dos
cidadãos que, ao invés de notícias e factos, estão a ser bombardeados
permanentemente com mentiras, meias-verdades e propaganda.
Por isso, o programa de luta que nos espera no imediato parece óbvio:
-- A necessária e urgente criação de um órgão de comunicação isento,
independente e livre dos poderes político e económico, com efectiva
abrangência nacional, que difunda noticiários e muita, muita cultura. Sem esse
passo, absolutamente fundamental, muito dificilmente sairemos desta teia;
-- A exigência da saída de Portugal da NATO e da União Europeia, porquanto
são organizações que, sem princípios e sem coerência, recorrem à mentira e à
agressão em prol da extensão e consolidação da globalização a todos os recantos
do planeta. Um dos exemplos mais descarados da sua incoerência e do seu
belicismo é o roubo do Kosovo à Sérvia, perpetrado em nome de direitos
humanos que, por sua vez, não se reconhecem nos territórios palestinianos, onde
Israel comete as chacinas que entende, sem sofrer uma única sansão, nem nas
regiões de maioria russa da Ucrânia;
-- Estarmos de sobreaviso e preparados contra os efeitos nefastos que a 4a
Revolução Industrial, em curso, irá trazer no imediato e no breve trecho. Já se
divulga na imprensa o impacto, em número de desempregados, que a
Inteligência Artificial acarretará. E o panorama é assustador! Desta vez, a
substituição do homem será uma realidade em todas as áreas de actividade
humana, incluindo nas profissões criativas! E se é verdade que o progresso
científico deverá ser desejável e bem-vindo, é fácil imaginar as consequências
em termos de milhões de desempregados que trará ao mundo inteiro. Enquanto
isso, os lucros das multinacionais aumentarão de forma inimaginável. E é bem
possível que a implementação maciça da Inteligência Artificial traga com ela
novas e mortíferas pandemias. Os laboratórios onde os vírus se produzem
trabalham em sintonia com o dito progresso, saberão colocá-los no mundo na
hora certa, para reduzir a população e evitar que multidões de desempregados
coloquem o capitalismo em risco;
-- Lembrar o Padre Mário também deverá dar-nos consciência de que a luta não
é por conquista de lugares neste poder, mas para derrubá-lo. Haverá outra
maneira de construir um mundo humano?
Pelo pouco que sabemos e, principalmente, por tudo o que se prepara nas nossas
costas que nem sequer imaginamos, o porvir vem carregado de inquietações e
nuvens negras. Se quisermos ter uma palavra a dizer sobre o futuro é imperioso
resistir ao modelo de mundo que nos está a ser imposto. Comecemos a
resistência pela educação dos filhos, com valores humanos, com firmeza, com
regras, com limites, com bons exemplos e também com muito amor, e sabendo
dar as mãos ao outro, aos outros, ao jeito de vasos comunicantes preconizado
pelo Padre Mário de Oliveira, na partilha de sentimentos e emoções e na luta por
objectivos comuns de justiça social, igualdade, liberdade e paz no mundo. Essa é
a única democracia em que eu verdadeiramente acredito!
Saibamos, pois, honrar-lhe a memória em cada acto do nosso dia-a-dia, por mais
simples que seja, semeando afecto, espalhando solidariedade, despertando
consciências!
Agradeço a honra do convite para estar presente nesta homenagem. É uma
felicidade estar ao lado de amigos, entre amigos, a falar de um amigo que
continuará a ser muito querido para todos nós! Agradeço o acolhimento
afectuoso da Unicepe. Agradeço a todos vós por terem vindo. E agradeço por
me deixarem partilhar convosco algumas preocupações que, tenho a certeza,
seriam também preocupações do Padre Mário. Deixemo-nos, então, sem
reservas, tocar pelo exemplo das suas práticas fraternas! Ousemos prossegui-lo!
Obrigado, queridos amigos, pela vossa atenção. Desejo-vos as maiores
felicidades!
Joaquim Murale
Porto, Unicepe, 16 de Março de 2024.
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