QUADROS DE UMA “IMPOSIÇÃO”
(ALGUMAS PALAVRAS TESTEMUNHAIS SOBRE A MORTE AQUI TÃO PERTO QUE A NÃO VEMOS”,
DE DOMINGOS LOBO)
UNICEPE 24 DE MAIO 18H30.
Texto da apresentação por Rui Pereira
Quem ler Domingos Lobo percebe que alguma coisa acontece de muito excepcional nas
letras portuguesas contemporâneas com este autor. Na sua poética, nas suas temáticas,
no desassombro que a grande literatura torna uma viagem para além dos limites do
nosso entendimento comum, corrente. Digo "pungente" no sentido de uma tristeza
indómita, mas também poderia falar-se de um riso tão desapiedado quanto exacto. Não
há fronteira que se aguente diante desta escrita.
Parece, com efeito, haver seres humanos que tudo aquilo em que tocam transformam em
beleza. O que tem a vantagem sobre o defunto Midas, de que o ouro não se come, mas a
beleza sim, mesmo quando não dá de comer. Domingos Lobo, que muito tardiamente só
hoje conheço em forma de gente presente, e de quem só há ridiculamente pouco tempo
conheço a sua escrita, é uma dessas pessoas.
Tomemos-lhe como exemplo estas linhas autobiográficas que me permito transcrever.
Aspas: “Andei pelos liceus de Lisboa, rebeldia mansa dos anos 1960; pelos corredores
das Faculdades de Direito (meu remorso de um semestre), de Letras; pelas salas austeras
do Conservatório Nacional a ouvir dos professores, sobre Teatro, o que já havia
esquecido e não me interessava – queríamos os interditos: Brecht, Grotovsky, Artaud,
Piscator; um mestrado em Administração e Economia Cultural, que utilizei pouco.
Fiz teatro radiofónico e jornalismo em jornais angolanos ao tempo colonial, depois,
como freelancer para cumprir os dias e resgatar uns trocos para livros, filmes, viagens.
Meteram-me, à má fila, no negreiro Vera Cruz, rumo às terras angolanas do Cuando-
Cubango. Era a guerra e eu, distraído, bebendo a propaganda salazarenta até à
imbecilidade, acordei em sobressalto numa noite de bazucas e kalachnikovs, de
costureirinhas trespassando os pássaros da noite, frémitos e perplexidade. Chana e
capim a perder de vista. Escrevi um livro sobre o tema que anda por aí em estudos
académicos, pelas histórias da literatura de guerra e em 2 edições catitas: Os Navios
Negreiros Não Sobem o Cuando. Foi a estreia nestas coisas de escreviver. Outros 4
romances se lhe seguiram, mais 3 livros de contos; 5 de poesia; peças de teatro; ensaio,
antologias.
Fundei com outros companheiros e dirigi três grupos de Teatro: GATO – Grupo de
Acção Teatral de Oeiras; Grupo de Animação Teatral de Salvaterra de Magos e
SOBRETÁBUAS - Grupo de Teatro de Benavente; encenei uma vintena de peças, com
Tchekov, Strindberg e Santareno como referências pendulares desse labor; chefe de
redação do Jornal do Vale do Tejo. Fui programador cultural na Câmara Municipal de
Benavente; autarca em Salvaterra de Magos, durante 32 anos (tenho por lá uma rua com
o meu nome, o que me sossega de vã eternidade); Presidente do Conselho Fiscal da
APE, desde 2000.
Participei na II Bienal de Silves, onde proferi a "lição de sapiência" sobre a obra de
Urbano Tavares Rodrigues, e na III Bienal, dedicada à obra de Pedro Tamen; em 3
edições dos ENCONTROS LUSÓFONOS, organizados pela CM de Odivelas; na
ESCRITARIA/Penafiel, em 2008, ano em que o evento foi dedicado a Urbano Tavares
Rodrigues e em 2013, ano de homenagem a Mário de Carvalho e no III Encontro
Internacional de Poetas (Ponta Delgada/2019).
Tenho colaboração crítica e ensaística dispersa por várias publicações: Jornal do Brasil,
Vértice, As Artes Entre as Letras, Revista Alentejo, O Escritor, Foro das Letras, Seara
Nova, Revista Cultura, EntreLetras, Nova Síntese (da Associação Promotora do Museu
do Neo-realismo), Avante! e Gazeta Literária. Dou aulas em Universidades de 3.ª.
idade; tenho 22 livros publicados e outros em gestação; vários prémios literários e
medalhas para polir o ego.
Ainda não estou cansado”.
Seguramente, que não, meu caro poeta, encenador, ator, romancista, contista, publicista,
autarca, combatente que fez da guerra uma guerra pela paz. Seguramente que não,
afirmo-o não por conhecê-lo pessoalmente, o que, como disse, só agora sucede, mas por
lê-lo. Em concreto por ler esta sua mais recente obra, “A morte aqui tão perto que a não
vemos”. Sei que não está cansado, pela sensação de maravilhada exaustão com que
acabei, eu, a sua leitura. Mais da obra que da minha fatigada plenitude ao lê-la,
procurarei dizer aqui duas ou três coisas. Alinhavos, porque bem sei que, movendo-me
eu noutras esferas de -terrível palavra esta- de especialização, sei de umas centenas de
outras pessoas, pelo menos umas centenas, que prestariam melhor serviço à
apresentação desta sua “aproximação” aos extremos que é “A morte aqui tão perto…”
do que eu jamais poderei fazer. A responsabilidade, é do nosso comum amigo Rui Vaz
Pinto, alma e substância desta casa de História do Porto culto e resistente em que nos
encontramos, a chamemos-lhe assim, “livraria UNICEPE”.
Vamos à vida e à obra, então. E na vida, o humano só tem, a meu ver, dois assuntos, o
amor e a morte. O amor em todo o espetro dos seus cambiantes do ódio à paixão,
passando pelas preferências e pelas amizades, pelos adversários que escolhemos e que
nos escolhem, por queles que nos diminuem e engrandecem, pelos pratos de que não se
gosta e por aqueles que se adora, pela gente a que chamamos nossa e assim a ela nos
dedicamos, pela arte que se ama ou detesta, por aquilo por que decidimos valer a pena
viver, quando não: morrer. E a morte, porque é sempre o pano de fundo da ação do
humano desde que sai das entranhas da mulher para entrar nas estranhezas do mundo.
Uma ontologia do nascimento obrigar-nos-ia a celebrar não os anos que fazemos, mas
os que desfazemos, do primeiro ao derradeiro, como passava a vida a lembrar-nos o
Manuel António Pina cujo nascimento continua em nós a realizar-se para além da morte
do seu corpo. Mas, nem só da morte dos corpos falo. Falo do cemitério de sonhos em
que o mundo se vai tornando se é que algum dia o não foi. Da morte de tudo o que
nasce em vidas cuja história nunca chega a escrever-se com maiúsculas. Da morte que
celebramos quando vislumbramos o fim de um mal, das saudades aos piolhos passando
pelas obras dos ditadores…
De amor e morte hão-de pois fazer-se também estas páginas pelas quais Domingos
Lobo nos dá a lermo-nos a nós próprios, através da sua escrita arrebatadora e total que
me faltam talento e saber para mais e melhor qualificar. Trata-se de um livro de contos,
digamos assim, para descrever o género, organizados por separadores poéticos, que são
exercícios brilhantíssimos dessoutra arte do autor, que é o verso. Contos que plasmam
quadros pungentes ou vão, noutro registo, para aí evoluindo, ao modo de uma arte do
suspense como lhe chamou Patricia Highsmith, e que surpreendentemente reincarnam
quando os julgávamos acabados, para se retomarem a si mesmo, mais adiante, como em
“A Máquina” (1,2,3) que serve de fio que nos diz que há mesmo um fio de costura na
arquitectura destas 164 poderosíssimas páginas.
Que dizer deste lugar de narração poética? Que por aqui perpassa o hiper-realismo e o
onirismo surreal? Que o autor trata da guerra, da morte soturna das grandes epidemias
que percorrem as idades do mundo sob a forma de vírus e preconceitos? Das figurações
para que são usadas a Covid-19, o HIV a eutanásia, o homicídio, o suicídio e a ternura?
Da traição que perpetra a morte dessoutro anacoreta no cimo dos montes ermos, a ver os
comboios da vida a ir (em Um comboio na noite) ou da mulher que regressa ao lugar do
seu estupro e abuso pelo seu próprio pai, o regedor que depois de ter molestado de sexo,
abuso e poder toda a aldeia encontra quem lhe enterre a lâmina da faca nas entranhas?
Podia falar disso e falaria sempre pouco, acerca destas páginas. Também poderia falar
do hino ateu e paródico do cura pedófilo, que vejo como personagem felliniana, a
rebentar de gozo, como diria o velho Eça, nessa figuração do grande pervertido que
cada moralista esconde no pátio das traseiras da sua existência de prédicas e hipocrisias.
Podia falar da grande metáfora de fragmentação do sentido que é “Noite de Natal” essas
cinco páginas e meio de antologia, como lhes chamou o crítico Miguel Real, e que
fundem o morrer e o nascer, a morte e o amor, na ontologia alegórica desse ser-aí
heideggeriano com velhas contas com o mito primordial de uma religiosidade
emblematizada pela violação da mulher que dá a vida e recebe a morte, no mesmo gesto
largo, escuro e esconso. Não vêm reis primordiais e felizes. Chega apenas o sofrimento
do fim sob a forma do fim do sofrimento nesse retorno emblemático do acto de
recomeçar para acabar.
Poderia falar do velho travesti e do seu namorado “das obras”, que um dia lhe esvaziou
a cama e a vida até à morte violenta às mãos da crueldade medieval que emerge nas ruas
da cidade dos nossos dias pós-modernos cobertos de pós antigos, medievos e
tenebrosos. Mas, tudo isso, fez Domingos Lobo melhor do que qualquer crítico ou
mesmo melhor do que qualquer uma das suas personae que cheiram a gente, a carne e
osso putrefactos e pulverizados umas vezes, vivos e vibrantes, outras.
Prefiro, pois, remeter para a surpresa, o choque ou a ternura das palavras do próprio
autor no desenho do que chamo quadros escritos que é o modo como se me deu a ler e
para ler esta obra. São quadros comovedores e devastadores. Bruno, o soldado com a
ponta do cano da G-3 na boca, “Não aguento mais” e o estampido que nos sobressalta a
nós próprios ali sossegadamente sentados a ler a página 112 que aponta como a bala na
boca do soldado suicida estas passagens desta outra tragédia portuguesa armada, muti-
racial e pluricontinental. O peso da mala do migrante sírio que só se lhe dilui quando a
democracia policial do nosso mundo o livra do peso da vida e, portanto, do peso da
mala, também. As lonjuras paradas do mar e das avenidas dos amores esconsos e
proibidos entre virilidades guerreiras e pueris. O Porto, “cidade de patrões”, descrição
desapiedada e não dita na sua vida secreta por detrás do granito de que toda a gente fala.
Mas, também, refundidos no seu discreto desfile as vozes, entre outras, de Camus,
Foucault, Barthes, Genet e a Genny que nos traz Chico Buarque pela mão. A vivíssima
crónica de abril a novembro, e a asserção sábia e dolorosa de “A nudez das lágrimas, a
pp. 94: “amamos sempre o que nos fere”.
Quanto poderia eu continuar a aqui noticiar desta minha, repito, imperdoavelmente
tardia, descoberta da obra de Domingos Lobo, através do seu último, i.e., do seu mais
recente escrito, que é ele próprio uma notícia de todos os outros, na medida em que
acredito no que escutei a mais do que um autor, segundo quem um escritor está sempre
a escrever o mesmo livro. Os títulos diferentes desse livro único, são formas tentadas,
meras -digamos assim- experiências formais do mesmo exercício.
No caso deste texto de Domingos Lobo, pareceu-me como já deixei sugerido acima que
se trata de ensaios literários sob a forma de quadros expostos. Há, com efeito, nesta
diegética uma imagética. Cada conto sublinha-se e sublima-se num quadro. Num ou
noutro, há uma sequência de quadros, de frames fílmicos, numa escrita de tal
versatilidade que vai da maior erudição lexical ao argot mais brutal com a mesma
delicadeza de quem tricota sentidos cruzando palavras que se fundem como se a língua,
assim sublimada, perdesse o seu carácter classista e servisse apenas para nomear classes
de coisas, sociedades de classes, lutas eternas do humano em breves episódios da
história e de histórias.
Há um labirinto na escrita de cada grande autor. Nele, labirinto, o leitor arrisca-se a
perder-se ou a ganhar-se. Esse é o repto amalandrado que cada livro lança a quem o lê.
Os olhos do autor convidam-nos para caminhos do seu próprio olhar. Dão-nos a ver
aquilo que vê. “Eu via operários”, diz o autor, na página 28, em que (cito) o pai via o
que fora e já não era e aponta para lá, enquanto o filho pergunta “onde pai”? Onde fica a
vista do que não se vê? Esta pergunta percorre todo o texto de Domingos Lobo. A
“estátua de sentir mágoas” (p. 70) na paralisia do corpo em que só o cérebro não pára,
como um castigo a dobrar (A guilhotina). Os morcegos de olhos incendiados de “A
Máquina” e o baile de monstros desse Drácula descendo aos cemitérios, vindo, conta
Domingos Lobo, ds “entranhas dos pesadelos” (p. 88, de “A nudez das lágrimas).
O quadro da morte leve de Ilda, levada pelo peso inexorável não da vida, mas da sua
subvida (Estava ali quieta, p. 45). O cabo que desobedece, no massacre do conto
“Recusa”, p. 62). O “Deus que é pai e metereologista nas horas vagas”, p. 62 do conto
“A cripta”. O esmagador apocalipse do bombardeamento com napalm na guerra de
Angola, do conto “Despedida” (pp. 34 e 35), que Coppola não filmou melhor sobre o
Vietname do que Domingos Lobo escreve sobre Angola.
Quadros, portanto. Quadros, intitulei esta minha leitura, quadros de uma imposição,
glosando o célebre Quadros de uma Exposição de Mussorgski sobre as telas Viktor
Hartmann. Quadros de uma imposição, de muitas imposições, de prescrições e de
proscrições, de obrigatórios e interditos. Mas quadros também da renitência, da
resistência de que se fazem o que chamamos o destino, para os que sabem, como
escreve Domingos Lobo, mas também “para os que não sabem que o destino se constrói
como as casas, com suor, luta e recusas” (p. 29) de “O meu D. Quixote”.
Em suma, caro poeta, calo-me com a sensação de ter falado muito e dito pouco, quase
nada. Mas procuro resumir esse pouco em duas ou três frases que se formarão assim:
Desconheço se a arte, a grande arte, cura. Mas sei que que queima, que fere. Como sei
também que ninguém sai ileso da leitura desta extraordinária peça de grande literatura
que Domingos Lobo vem de nos oferecer.
|