(Algumas palavras acerca de Crónicas de um Insubmisso, de Manuel Durán
Clemente).
Texto da apresentação por Rui Pereira
Caro coronel Manuel Durán Clemente, permita-me que o saúde e que o
despromova (certamente não sou o primeiro a fazê-lo). Mas, desta vez, quero
despromovê-lo por assim dizer “para cima”. Quero despromovê-lo, neste abril de
2024, ao capitão de 1974, que tantos de nós guardam nos olhos, na cabeça e nos
sentimentos. Capitão, Durán Clemente, portanto.
É do seu rosto, não a única, há muitas, muitas outras, mas é do seu rosto a talvez
mais pregnante imagem que guardo nos olhos, a respeito desse tempo que se
abriu em abril. E a imagem de que nunca mais me livrei é a do momento em que
simbolicamente se fechou o que pensáramos aberto. É o seu rosto perplexo e
grave, querendo falar transparentemente com o povo, nos estúdios do Lumiar, da
RTP, antes de os dramas e as alegrias, as tensões da História, com H maiúsculo, e
os perigos do fio das coisas, esse perigoso fio das coisas -como dizia Antonioni
acerca dos filmes que nunca realizou-, antes de tudo isso ter dado lugar à farsa, à
perigosa farsa das coisas em que estamos, hoje, metidos meio século volvido.
Vivíamos um tempo em que a gente era. Era de facto. Como lhe chamam a
historiadora Raquel Varela e o investigador Roberto Della Santa, numa obra sobre
a recente história de Portugal, um tempo em que “nunca tantos mandaram tanto”.
Gente que sentiu o que foi ser, para glosar outro autor, daqui do Porto, Álvaro
Magalhães. Sim, aquilo é que foi ser.
Vivemos hoje um tempo de muita gente pouca. Gente que não é nem deixa de ser.
Gente que ora é, ora não é. Gente que nem sabe se é ou não é. Gente que é o
que for preciso ser para não deixar de ser. Gente existente, sobrevivente,
sobrevivendo ao que acontece e chamando a isso: viver. O combustível que move
o nosso tempo é o medo e é o engano. O medo da espingarda que contra “esta
força se virou”, como cantava José Mário Branco; o engano da tanta “mentira
andar à solta”.
Vivemos um tempo em que o desrespeito se tornou uma virtude, na expressão de
Gunther Anders e em que a generosidade ficou órfã. Vivemos um tempo de
cínicos, que se riem não da comédia de Danny Kaye, mas de um capitão que
queria dizer a verdade ao povo. Um tempo de sonâmbulos que julgam ser uma
comédia a tragédia dos povos que ficam sem capitães capazes de arriscar couro e
cabelo para despertarem o povo do seu sono da razão que tantos monstros
engendram e para dizerem a verdade ao povo. Walt Withman foi muito céptico, no
seu “Oh Captain, My Captain”. Os nossos capitães, apesar de tudo, não jazem no
convés. Estão vivos, tantos deles, e insistem na condição vivente.
Somos todos portadores da História que atravessamos e que nos atravessa. Eu
tinha doze anos, vinha de uma família com gente com bilhete tirado e mala aviada
para o “quarto das danças”, na PIDE. Em abril de 74 não sabia o que se passava.
Mas, em novembro de 1975, sim. Sabia como uma criança de uma família que no
Alentejo participava nas comissões de moradores, nas ocupações de casas, que
ajudava ao mercado das cooperativas agrícolas, que testemunhava a presença do
Copcon nos liceus quando havia borrasca e sabia. Sabia que rosto era o daquele
capitão na imagem, a quem faziam sinais e que resolveu numa semiologia política
das grandes inversões revolucionárias falar diante das câmaras de televisão sobre
o que se passava por trás das câmaras de televisão. Tinha onze, doze, treze anos
franzinos e ajudava, carregando um balde de massa ou cimento maior que eu, a
construir a estrada que não havia, o lar para os mais velhos, as creches para os
mais pequenos, aos fins de semana, com os homens e as mulheres que se
juntavam para construir. Construir uma parede como quem constrói um país, como
quem levanta um mundo.
Sabia as cantigas, claro. Zeca, Zé Mário, Sérgio, Fausto, Paulo de Carvalho, Tordo
e Ary, Adriano e tantos outros que cantavam o mundo que se levantava, animando
a malta. As cantigas da terra que era, a terra de “em cada esquina um amigo” e
não da que viria a ser, esta terra de hoje, tão parecida com a de antes, a de muito
antes, esta terra de “em cada esquina um mendigo”. Tinha onze, doze treze anos,
como toda a gente, nesse tempo que recordo não fundamentalmente com
nostalgia, que é da ordem do puro sentir, mas principalmente como razão vencida.
Como política que é da ordem da emoção, mas também da razão. E da desrazão.
Falei da imagem que guardo fundo, que é uma inscrição da História que trago no
corpo e na mente, num tempo dominado por gente cuja mente, para ter uma
inscrição no corpo, precisa de fazer uma tatuagem. E é nesse sentido que falo. Foi,
a esta luz, que li as Crónicas do capitão Duran Clemente, Insubmisso no seu
posto, então como hoje. Foi a esta luz que o acompanhei na sua meninice e
juventude na quinta de Santa Rita, no Pragal, em S. Domingos de Benfica e em
Penamacor, como diz: “a planura, a mata, o campo e os montes”... Depois o Pilão,
os Pupilos, lugar sobre o qual o verso inicial de um poema do próprio Durán
Clemente diz: “Chegados aqui, talvez bastasse não dizer nada” …
Depois, vamos encontrá-lo já na vigília da Capela do Rato. No Congresso da
Oposição Democrática em Aveiro, em que não resiste a opor-se aos polícias da
situação encarregados de reprimir quem se opunha à situação. E depois, já na
Guiné-Bissau, na guerra perdida, onde a paz, a democracia e a liberdade
germinaram e começaram a ganhar no calor húmido dos trópicos, entre os jovens
capitães que no verão de 1973 começavam a desbravar, ali mesmo, em Bissau, a
primavera de 1974. Percebem-se as origens bem mais do que meramente
corporativas do movimento que começava a tecer-se. Percebe-se o pano cru de
que se ia fazendo a politização dos jovens oficiais, cansados de guerra e ditadura.
Vamos vê-lo, em seguida, no pulsar da Revolução. Ao lado daquele que é,
porventura, se assim se pode falar, o mais puro e insigne de todos eles, Vasco
Gonçalves que conheci só em 1988, enquanto jornalista, descobrindo um olhar
simultaneamente vivo, mas também o mais entristecido de quantos olhares me
foram dados ver até hoje.
E apanhamo-lo, a ele, Duran Clemente, depois do adeus, depois de sair da RTP
nesse dia 25 de novembro de 1975, escondido em casas de amigos e
companheiros, passando clandestinamente a fronteira e iniciando um exílio à moda
antiga, agora em Angola, depois de uma passagem pela sempre fraterna Cuba. E
voltaremos a vê-lo, naquilo em que se tornou o seu futuro, nos laços da
cooperação com a Guiné ou na Câmara do Seixal com a mesma ideia de agosto
de 1973, de abril de 1974, de novembro de 1975: pôr ao serviço do povo, o poder,
seja lá isso o que for.
Encontramo-lo nos versos, nos dele e nos de outros, nas reflexões sobre o papel
dos intelectuais e nos trabalhos da memória, a que voltarei mais adiante.
Percorremos, neste livro, com Manuel Durán Clemente, pois, a sua versão da
História que o percorre e de que é portador. Uma história simultaneamente comum
e incomum. Um testemunho do tempo vivo em que outra vida foi possível, em que
se demonstrou que foi e que era possível viver no campo fraterno da cooperação e
não no ar rarefeito e cruel da competição. Vivi, também eu esse tempo. E relato-o
às gerações mais novas, quando vem à conversa. Deponho: isto que vos dizem
hoje ser a vida, a única vida, sem alternativa, é uma falsidade. Eu vivi de outra
maneira. Sei que é possível e que é melhor. Tive gente que ma proporcionou. E
falo-lhes de capitães e de esperanças, de um tempo em que a ingenuidade não
era o pior dos crimes. E em que até os cínicos escondiam o seu sorriso amarelo e
pedante, porque o tempo não era o deles. Haveria de vir a ser, sabemo-lo. Mas
não era.
É certo que, como dizia Paul Ricoeur, que a experiência é intransmissível. Mas,
caramba, não há-de ser hermética. O facto de, mal ou bem, abril ter chegado à
data redonda do meio século, é uma ocasião única, de excelência, na luta pela
memória, a que aliás, Duran Clemente dedica várias importantes páginas deste
seu livro e a quem tem dedicado boa parte da sua vida. Que luta é esta? É a luta
contra a desmemória enquanto operador político, esse processo pelo qual
gerações de governantes, sem excepção, dezenas de edições de manuais
escolares, um belo número de academias de formação de professores e o coro do
nacional mediatismo têm desenvolvido, umas vezes com mais consciência outras
com menos, para tornar o 25 de abril de 1974 uma data mais, para decorar dos
manuais, como o 5 de outubro de 1910, o 24 de agosto de 1820, a Aljubarrota de
14 agosto de 1385, ou a Zamora de 1143, em nome da qual se agitaram, neste
país, nesta cidade, aqui bem ao lado, como faz hoje uma semana, bandos de
aspirantes a fascistas que nem isso conseguem ser pelo que nada mais lhes resta
senão oficializarem-se como delinquentes.
Mas, a besta está aí. Mora, sobretudo, no não pensamento que percorre gente
desconseguida que vê a vida desolar-se-lhe alegremente, alastrando a
precariedade de um vínculo laboral para a precariedade enquanto condição
ontológica. Gente descartável, num mundo de aparências, reluzente do feio que é.
Como dizia Platão, os homens sem memória ficariam eternamente crianças. E é
por isso que é importante não esquecer. É essa a importância dos homens e das
mulheres que fizeram o que fizeram, que criaram o Acontecimento, com maiúscula
uma vez mais, o Acontecimento que interrompeu a normalidade do cinzento “viver
habitualmente”, na formulação de Salazar, que procurou fundar a vida em novas
bases, que em 19 horas de operações militares a 25 de abril e nos 19 meses que
se lhe seguiram até 25 de novembro de 1975, é essa a importância dizia, que
essas pessoas que o fizeram, façam agora no Portugal do longo novembro a sua
memorabilia, com o mesmo cuidado e delicadeza com que fizeram o Portugal
breve de abril.
Também para nós e para o nosso país, caro capitão, são importantes as palavras
que Kundera escreveu acerca da sua gente e do seu país também ele
normalizado: a revolução é a luta dos homens contra o esquecimento.
Aproximando-me do fim, direi que é um gosto poder conhecê-lo pessoalmente,
para além da obra e da imagem que conhecia e que conservo. É um gosto,
mesmo se o encontro se dá no tempo de derrotados em que vivemos, mas no qual
inteiros nos conservamos. E que por isso, ainda a que a remar contra a maré, se
navega a desinquietar… Um abraço grato e comovido, coronel Manuel Durán
Clemente. Pelos livros e pelo resto todo do que foi e do que ainda falta ser.
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