ONDE A ÁGUA CANTA E A SAUDADE CHORA, de Eva Cruz
Texto da apresentaçáo de Cristina Marques
Hoje é um dia feliz para mim. Um dia emotivo.
Por estarmos aqui neste espaço, a UNICEPE, assumindo tudo o que
de dignificante ele representou e representa e por estarmos juntos a
pretexto do livro da Eva: Onde a água canta e a saudade chora.
Vou começar por trazer para este nosso encontro O Tratado da
Gratidão, de S. Tomás de Aquino, porque quero agradecer à Eva,
recorrendo ao 3.º nível da gratidão, o nível da retribuição, segundo Tomás
de Aquino, nas minhas palavras, o nível do compromisso. Obrigada. Com
esta palavra assumo um compromisso para consigo. Porque lhe reconheço
valor humano e literário, quero estar obrigada a.... e assumo o
compromisso de ser sua leitora sempre, de divulgar a sua obra e o de ser
sempre sua aluna.
Este livro, Onde a água canta e a saudade chora ,é uma compilação
de textos e crónicas (este é o 1.º volume!) publicados no jornal Labor que,
numa atitude gentil e generosa de apoio à cultura e incentivo a escritores
ligados à cidade de S. João da Madeira, facilitou a sua publicação.
Os textos da Eva são prosa poética, assegurando o seu lugar na
literatura e dando consistência à sua já vasta obra. Dizia eu, este livro fez
reunir o que foi publicado no jornal e, não estando subordinado a uma
temática única, basta à autora que a vida ofereça uma cor diferente do
cinzento da rotina para o seu olhar atento e o pensamento interventivo aí
colher o motivo para fazer nascer textos e crónicas que partilha com os
leitores. A sua boa receção, por parte dos leitores, funcionou como uma
2
dependência, uma adição, como agora dizem: “Tenho de ler a crónica da
Eva… Tenho de ir ler o Labor. Já leu a última? De que fala?”, dizia-me
alguém na rua. O impacto destas publicações e, sobretudo, a qualidade
literária dos textos exigiam que fossem preservados e divulgados num
suporte menos efémero: o livro. Aqui está ele.
Mas um livro não é só o texto em si: os paratextos também o
constroem. Destes destaco a capa e a Introdução de Adão Cruz, outra
peça literária. As artes, de um modo geral dialogam, mas a pintura e a
escrita têm uma relação de fraternidade, quase gemelaridade, e os textos
da Eva confirmam isso: são quadros.
Voltando aos paratextos, detenho-me na capa que é um dos
milhares de quadros de Adão Cruz. Regressamos, portanto, à relação da
pintura e da literatura… A capa exibe o que, no que conheço dos seus
quadros, é um dos traços distintivos do pintor, o trabalho com o azul,
sobre o azul e pelo azul.
Pelo azul do mundo, muitas telas foram pintadas por Adão Cruz.
Este quadro-capa de livro pode ser visto como uma representação
do que o título sugere e uma representação do conteúdo da maior parte
dos textos e crónicas: uma atitude contemplativa e reflexiva sobre um
cenário de azul, ( a saudade do passado, o sonho) e sobre um cenário de
aridez, o solo que se desertifica em duplo sentido: físico e humano.
Aprendi, nas longas cadeiras de literatura e teoria literária, teses
estruturalistas que convidam a considerar a obra pelo texto , pela
tessitura de palavras e pelo que elas constroem, enquanto mensagem,
contendo a capacidade de interagir com o leitor, levando-o ao prazer do
texto. Quero dizer que essas teses excluíam a visão da obra por lentes
3
biografistas ou com tentativas de interpretação pelo que se conhece do
autor. O texto deve ser recebido limpo de interpretações biografistas. Os
textos da Eva erguem-se e afirmam-se pelo que são enquanto texto
literário.
No entanto, a leitura de Onde a água canta e a saudade chora leva-
nos, indubitavelmente, a descobrir a Eva como pessoa: o seu humanismo,
a integridade de caráter, a sua generosidade e a defesa da liberdade e da
democracia. Não partimos da pessoa para moldar a leitura, mas chegamos
à pessoa pela leitura das suas palavras.
Nesta obra, que já li 3 vezes, tudo se pode aglutinar na palavra
emoção. Nunca deixei de a sentir, nem a vi atenuada com as várias
leituras. É uma emoção que nasce da leitura de frases, de palavras, a
emoção de lidar com um texto corretamente escrito, límpido,
despretensioso, transparente quando tem de o ser ou mais opaco pela
mesma razão; a emoção de ver a natureza personificada, humanizada,
tantas vezes a ultrapassar os homens nos seus valores, e a emoção de
vivenciar a emoção da voz textual, numa espécie de paraemoção e
metaemoção!
Estes textos têm o poder de nos emocionar pelas razões citadas,
mas também pela maior potencialidade da obra de Eva Cruz : o grande
poder de nos fazer visualizar ou experienciar o que é narrado ou descrito.
São textos sinestésicos pelo recurso às sensações (visual, olfativa, auditiva,
tátil, gustativa) e, nós leitores, damos connosco a experienciar essas
sensações.
4
Cada texto é um quadro pintado com cores e acrescido das outras
sensações. Quando a AI nos puser a cheirar e a ouvir onomatopaicamente
palavras, vou introduzir 2 ou 3 textos da Eva. Irei gostar!
O ato da leitura permite a identificação do leitor com a voz
narrativa. Isto acontece porque não pode ser evitado, tal é a sua força.
Ninguém escapa. Cada texto é um espaço de emoções, recordações,
sonhos que conseguem incluir o leitor. Apetece ficar dentro do texto.
A dimensão imagética e pictórica, que recorre a cores e
cromatismos, também lança mão das cores da recordação e dos
sentimentos e são cores vivas, de tão presentes e próximas, ainda que
distantes. E , de novo, o leitor se emociona porque vê resgatado um
passado que também foi seu pela semelhança de situações, de contextos
históricos, de geografias conhecidas.
Lembrando alguns poetas, por exemplo, Bernardim Ribeiro, Fernão
Lopes, Bernardo Soares, Manuel da Fonseca, entre muitos outros, posso
afirmar que a prosa poética é transtemporal (atravessa movimentos
literários ou vai angariando um pouco de todos eles), portanto, há
classicismo, romantismo, neorrealismo, impressionismo e pós-
modernidade na obra de Eva Cruz. O classicismo salta à vista no rigor e
correção da escrita, na construção sintática, na limpidez estilística. O
neorrealismo, na denúncia de feridas socias, no retrato grotesco de
algumas personagens. O romantismo na expressão subjetiva, individual,
sentimental do eu. Indícios do pós-modernismo existem na construção e
desconstrução de personagens, na sua versão grotesca “o corpo ficou [
após uma colossal queda] muito torto e a mente também não se ajeitou lá
muito bem à cabecita”, na quebra da linearidade temporal, numa
5
interação constante entre passado-presente, na diluição dos limites entre
o real e o irreal, como o “pássaro azul”, na pluralidade de vozes textuais,
na desconstrução pontual da linguagem pela inclusão de palavras escritas
reproduzindo a sua realização fonética, por exemplo, algumas corruptelas
populares e regionalismos.
E com esta referência quero chegar a outra vertente da obra da Eva:
a dimensão etnográfica, pela recuperação de tradições, trajes,
gastronomia...
É comum considerarmos que um texto literário é um documento
linguístico, artístico, social, histórico e etnográfico. A obra da Eva é uma
prova disso.
Há ainda outra dimensão a considerar, a pedagógica: o leitor
aprende a ver o mundo pelos olhos do narrador que analisa desníveis e
problemas sociais, o contraste entre a cidade e o campo, mas também
aprende a ver poesia pelos olhos da primavera ( e vice-versa!) , por
exemplo: “Nasce no coração da Primavera a poesia”<(i>. É o momento de
parar e deixar o pensamento avançar... Poderemos, especulando sobre a
frase, dizer que a poesia é um retalho de natureza primaveril, acordado
pelos sentidos, e vivenciado pela emoção ou sentimento (nesta frase
representados pelo “coração”). Se completarmos esta definição com o
título do texto ”Sem palavras” de onde foi retirada a expressão, fica
completa uma definição de poesia: É tudo aquilo que acabei de dizer ( um
retalho de natureza, despertado pelos sentidos, e captado com emoção),
feito através de palavras, mas onde estas quase se apagam perante o seu
poder de fazer visualizar e fazer sentir ou perante o sublime do que é
observado.
6
Pensando nos textos que poderia ler, aqui, hoje partilhando-os
convosco, selecionei três : o primeiro, o último, e “O voo da garça”. Este
texto, escolhi-o, porque reúne as caraterísticas do estilo da Eva e a sua
intenção enquanto autora: senão, vejamos, a observação de uma garça é
o pretexto para uma reflexão sobre o homem, as condições adversas da
vida, a luta pela sobrevivência. De facto, “É tão humano o voo da garça!”.
Neste texto, destaca-se a personificação da natureza “ O rio esgotado, luta
para manter a vida no seu ventre.”, o recurso às sensações com destaque
para a visual, com o dinamismo cinético : “rio acima”, “rio abaixo”, “aqui,
ali”, “de lá para cá” ...
Não gosto de me alongar, nem entediar quem me está a ouvir, mas não
posso dispensar-me de fazer um convite a uma pessoa de quem me
lembrei aquando da primeira leitura e que, entretanto, vi convocado,
creio que pela Eva: trata-se de Kusturika. Também quero que cá esteja
Kusturika. Se o realizador conhecesse alguns textos da Eva, encontraria
matéria temática para novos filmes, com cenas de cândido humor, de
fusão do real com o surreal com personagens profundamente humanas
nas suas fraquezas e limitações...
Tal como em Kusturica, nalgumas crónicas e textos da Eva, mistura-
se habilmente humor, tragédia, candura, realidade. Portanto, acabei por
fazer cruzar, com a literatura, uma outra arte: o cinema.
Em cada crónica, em cada texto, uma peça literária, um quadro,
uma cena de um filme, uma viagem...
“Soltou-se de novo o pensamento e corri atrás dele sem parar, num
torvelinho de imagens que fez soltar o meu esquecido riso de criança”.
7
Na verdade, a corrida não é solitária, nós leitores, também a
fazemos.r>
10 de fevereiro de 2024
Cristina Marques
|